Folha de S. Paulo


O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil

Guilherme Santana/ VICE
O guineense Youssouf Barry, 18, recebeu a promessa de que jogaria no S�o Paulo e, depois de pagar o empres�rio, foi abandonado no ABC paulista.
O guineense Youssouf Barry, 18, recebeu a promessa de que jogaria no S�o Paulo

Youssouf Barry carrega uma inoc�ncia no sorriso capaz de faz�-lo parecer mais jovem que os rec�m-completados 18 anos. Ele desliza fotos sobre a tela do celular e mostra o irm�o mais velho, zagueiro de um time da terceira divis�o francesa, e a irm� ca�ula, que ficou na Guin�. Ao passar o dedo outra vez para a esquerda, surge a foto da m�e. Ela veste um traje mu�ulmano t�pico do pa�s africano. O garoto tenta disfar�ar, mas seu rosto se entristece ao bater os olhos na imagem. Ele n�o v� a m�e h� quase dois anos.

A saudade aperta nas solit�rias tardes de domingo entre as paredes sem reboco do barraco de dois c�modos em que se refugiou na periferia de Santo Andr�, regi�o metropolitana de S�o Paulo. Robusto, com 1,63 metros, Yousoouf � lateral-direito do time amador do Alhambra. Vive um cen�rio bem distinto do que imaginou ao deixar sua terra natal durante a �ltima Copa do Mundo no Brasil. "Eu vim para ser jogador profissional de futebol, mas fui enganado", diz, nos campos de terra do Jardim Utinga, onde sua equipe joga.

Um empres�rio transformou o sonho de Youssouf em pesadelo. O jovem chegou ao Brasil na madrugada de 25 de junho de 2014 depois de cruzar os mais de 5.000 quil�metros que separam a capital Conacri do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Ao lado dele, passaram pela imigra��o outros cinco garotos guineenses entre 16 e 17 anos.

O grupo havia recebido a promessa de um suposto empres�rio, identificado como Walter Bangoura, de que seriam levados para treinar com o time juvenil do S�o Paulo e morar nas luxuosas instala��es do centro de treinamento da base, em Cotia. Para isso, cada fam�lia pagou cerca de 9.000 d�lares ao agente. "Meu pai juntou todas as suas economias para pagar a viagem. O maior sonho dele � ter um jogador famoso na fam�lia", conta Youssouf.

Os garotos sa�ram da Guin� com honrarias. Foram recebidos no Pal�cio do Governo pelo presidente Alpha Cond�, que recomendou empenho aos jogadores e deixou expl�cito o desejo de contar com eles na sele��o sub-20 do pa�s. Logo nos primeiros dias em terras paulistanas, por�m, os meninos estranharam a rotina nada glamorosa que eram obrigados a cumprir.

Guilherme Santana/ VICE
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil

Eles foram alojados em um corti�o no bairro da �gua Funda, zona sul de S�o Paulo, onde passaram quatro semanas dormindo no ch�o e comendo apenas uma refei��o por dia. "Assim que acordava, a gente comia p�o e tomava um copo de leite. Depois, n�o tinha mais nada", lembra Youssouf. Durante a manh�, eles treinavam numa escolinha do S�o Paulo na regi�o. Foi assim at� que o agente retornou para Conacri e desapareceu. Com a mensalidade vencida, os meninos foram dispensados da escolinha e largados no corti�o. S� ent�o se deram conta de que haviam ca�do em um golpe do empres�rio.

"Meus amigos da Guin� me pedem para mandar camisas, imaginam que estou num clube grande. Mas minha realidade � muito diferente disso."

Por falta de pagamento do aluguel, acabaram despejados. Na �poca, nenhum deles falava portugu�s. Foram acolhidos pelo ex-jogador J�nior Lima, que atuou com o irm�o de um dos garotos no futebol da Indon�sia. Ao tomar conhecimento da situa��o, ele buscou os meninos numa van e os abrigou temporariamente nos fundos de sua casa. Dias depois, policiais bateram � porta de J�nior para investigar uma den�ncia an�nima de c�rcere privado.

O ex-jogador alegou que amparava os garotos a pedido de um familiar deles. O grupo foi levado para o Conselho Tutelar de Santo Andr�, que acionou a Embaixada da Guin� em Bras�lia. A Pol�cia Civil apurou o caso, mas, como Walter Bangoura n�o foi encontrado, o processo acabou arquivado. Por sua vez, a diretoria do S�o Paulo afirmou que jamais manteve conv�nio com agentes da Guin�.

"Os meninos estavam abalados pelo tratamento que receberam do empres�rio, mas n�o queriam retornar a seu pa�s sem antes tentar vaga em times brasileiros", afirma a conselheira tutelar Eliana Fernandes. Havia a possibilidade de deporta��o, mas as fam�lias assinaram documento conferindo a guarda provis�ria dos garotos a J�nior Lima, que passou a ser o respons�vel por eles no Brasil e os levou para fazer testes em clubes da Grande S�o Paulo.

Apesar da afli��o causada pelo golpe do empres�rio, os pais tinham outro motivo al�m do futebol para tentar manter os filhos longe de casa. Naquele per�odo, Guin�, na��o com o s�timo pior IDH (�ndice de Desenvolvimento Humano) do mundo, convivia com o fantasma do ebola. O v�rus come�ou a se espalhar no fim de 2013 pelo interior do pa�s, um dos mais afetados pelo surto que deixou mais de 11.000 mortos no continente africano. Somada a euforia pela realiza��o da Copa e ao amadorismo do futebol local, a epidemia serviu para o empres�rio convencer os pais a mandarem os filhos para S�o Paulo.

Acervo pessoal/Vice
Registro do encontro dos jogadores de Guin� com o presidente Alpha Cond� antes da ida ao Brasil.
Registro do encontro dos jogadores de Guin� com o presidente Alpha Cond� antes da ida ao Brasil.

Familiares processaram o empres�rio na Guin�, mas n�o conseguiram reaver o dinheiro. Um dos meninos, filho de um membro da diplomacia guineense no Canad�, rumou para o pa�s da Am�rica do Norte. Outros tr�s deixaram o Brasil no fim do ano passado. Sobraram Mahmoud, que agora tenta a sorte no interior do Paran�, e Youssouf, o �nico deles que permanece em Santo Andr�. Em contato com a reportagem, a Embaixada da Guin� informou que "o presidente Alpha Cond� n�o tem nenhum v�nculo com Walter Bangoura".

Ainda segundo a Embaixada, um staff diplom�tico foi enviado a Santo Andr� em 2014 para acompanhar a situa��o do grupo, mas, como se tratava de "negocia��o particular" entre empres�rio e as fam�lias, o governo do pa�s diz n�o ter responsabilidade pelos meninos.

Por outro lado, os garotos afirmam que, pelo fato de o presidente Alpha Cond� ter chancelado a viagem em uma cerim�nia oficial, seus pais se sentiram seguros para fechar o neg�cio. De acordo com eles, Walter Bangoura tamb�m prometera �s fam�lias se responsabilizar pela educa��o dos filhos. Para viajar, Youssouf teve de interromper os estudos antes de cursar o ensino superior. Com o visto vencido e a falta de documenta��o para comprovar escolaridade, ele n�o pode nem prestar vestibular. Tamb�m n�o conseguiu tirar a carteira de identidade para estrangeiros.

H� dois meses, Youssouf arranjou um emprego pr�ximo � esta��o da Luz, no centro de S�o Paulo —obviamente, sem carteira assinada. Ele recebe 830 reais para limpar e carregar m�quinas de costura. "O governo da Guin� n�o me ajudou em nada. O �nico apoio que tive aqui foi de brasileiros que me deram abrigo quando fomos despejados." Walter Bangoura n�o foi localizado pela reportagem para comentar as acusa��es.

Guilherme Santana/ VICE
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil

GARIMPO DE JOGADORES NA �FRICA

Youssouf e companhia foram v�timas de pr�tica recorrente no Brasil. O tr�fico internacional de pessoas envolvendo o futebol faz do continente africano o maior alvo. Antes, esse com�rcio clandestino de jovens talentos se limitava � rota �frica-Europa, tendo a Fran�a como destino priorit�rio devido � l�ngua oficial comum a muitos pa�ses fornecedores de "p� de obra" a baixo custo, como Guin�, Camar�es, Costa do Marfim e Senegal. No entanto, com as restri��es de imigra��o impostas pela Europa, clubes da Am�rica do Sul e principalmente do Brasil se tornaram a alternativa para os empres�rios. Quando as promessas n�o vingam, elas acabam sendo exploradas em clubes amadores ou obrigadas a trabalhar em troca de comida e abrigo.

Por se tratar de um continente em que milhares crian�as vivem em situa��o de extrema pobreza, sob constante amea�a de conflitos violentos e surtos de enfermidades, a �frica se tornou mina de ouro para agentes. Um empres�rio brasileiro, que j� importou jogadores africanos para o Brasil mas diz n�o operar mais no continente, descreve � VICE Sports o processo de capta��o de talentos. "Como o futebol de l� n�o d� futuro e paga mal, os pais preferem que seus filhos sa�am em busca de uma vida melhor. Raramente oferecem alguma resist�ncia", diz o empres�rio, em condi��o de anonimato. Ele tamb�m revela a facilidade encontrada para entrar no Brasil com jogadores estrangeiros. "O visto de estudante ou de turista j� � suficiente. Apenas uma vez me pediram a autoriza��o dos pais de um garoto na imigra��o. Se o menino vem para jogar futebol, que mal tem?"

O regulamento de transfer�ncias da Fifa n�o permite a transfer�ncia de menores de 18 anos para outros pa�ses. No caso de meninos do continente africano, a exce��o � se a fam�lia tiver se mudado para o mesmo pa�s do clube contratante por motivos n�o relacionados ao futebol. A legisla��o considera nulo qualquer tipo de procura��o assinada pelos pais. Recentemente, Barcelona, Real Madrid e Atl�tico de Madri foram punidos pela Fifa por recrutar jogadores africanos com menos de 16 anos de idade.

Guilherme Santana/ VICE
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil
O tr�fico de boleiros est� abandonando um monte de africanos pelo Brasil

Por aqui, os clubes se especializaram em burlar a regra. O angolano Geraldo, revelado pelo Coritiba, e o camaron�s Joel chegaram ao pa�s ainda adolescentes. O atacante do Santos foi trazido por um empres�rio aos 15 anos e teve de treinar como amador por tr�s temporadas at� poder assinar um contrato profissional com o Londrina.

Joel � tido como um exemplo de supera��o para Youssouf, que, apesar do golpe sofrido, segue em busca de um lugar ao sol no futebol brasileiro. Disputando campeonatos de v�rzea com o Alhambra, ele consegue faturar at� 80 reais por jogo e, vez ou outra, ganha uma cesta b�sica dos dirigentes. F� do ex-lateral e pentacampe�o do mundo Cafu, ele j� se comunica bem em portugu�s e � querido pelos colegas de time. Reconhece, por�m, que a aventura at� aqui lhe muito mais dissabores do que conquistas.

Segundo ele, Walter Bangoura teria retomado contato com sua fam�lia no in�cio deste ano. O agente informou que levaria outros 15 jogadores da Guin� para um time de Bras�lia e estava disposto a incluir Youssouf no grupo. "Nunca mais aceito nada dele. O que fez comigo n�o tem perd�o", afirma. Voltar para Conacri n�o est� em seus planos.

Em dezembro do ano passado, a Guin� anunciou o fim da epidemia de ebola no pa�s, mas um novo registro do v�rus em abril causou oito mortes e tornou a alarmar a popula��o. Quando bate a saudade, Youssouf recorre ao celular e � foto da m�e. Na v�rzea de Santo Andr�, a esperan�a ainda reside num par de chuteiras e persevera por dentro da camisa amarela em rever�ncia ao pa�s que ele ainda n�o pode chamar de p�tria.

Acervo pessoal/Vice
Youssouf [segundo da direita pra esquerda] com os colegas no aeroporto antes de embarcar para o Brasil.
Youssouf [segundo da direita pra esquerda] com os colegas no aeroporto antes de embarcar para o Brasil.

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