Folha de S. Paulo


Perdemos o sentido de planejamento, diz historiador do Rio

Cr�tico ferrenho do projeto de reforma da zona portu�ria do Rio, o Porto Maravilha, dos VLTs (ve�culos leves sobre trilhos) na avenida Rio Branco, da expans�o das linhas do metr� e da prepara��o para as Olimp�adas do ano que vem, Nireu Cavalcanti, 70, re�ne os instrumentos do historiador e os procedimentos do urbanista e arquiteto para dar sua vis�o do Rio aos 450 anos: "Perdemos o sentido de planejamento".

Em entrevista � Folha, o autor do livro j� cl�ssico "O Rio de Janeiro Setecentista" (Editora Zahar, 2003), que ganha nova edi��o no bojo das comemora��es, vai na contram�o da prefeitura e aponta a zona oeste como o melhor caminho para a cidade ter um crescimento equilibrado, desde que se resolva o problema do transporte de massa e habita��o popular.

Mauro Pimentel/Folhapress
Historiador Nireu Cavalcanti
Nireu Cavalcanti: "O centro do Rio hoje n�o tem um n�cleo. S�o retalhos, s�o fragmentos que escaparam � destrui��o orquestrada pela especula��o imobili�ria com a coniv�ncia do poder p�blico".

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Folha - Como o senhor v� as mudan�as pelas quais passa o Rio, sobretudo na regi�o portu�ria?

Nireu Cavalcanti Cada vez que acontece um fato inusitado no Rio -desde a chegada da Corte [1808] at� as Olimp�adas-, ele � aproveitado por diversos n�veis de poder para expressar seu regozijo. Nesses momentos s�o feitas obras que n�o t�m nenhuma rela��o com o conjunto das necessidades da popula��o. O governante aproveita para fazer o que tem na cabe�a. Foi assim que se resolveu derrubar o morro do Castelo, em 1921. E � assim que est� sendo realizada a obra na regi�o portu�ria.

A quest�o � que perdemos o sentido de planejamento. O �ltimo momento de algum planejamento foi nas �ltimas duas d�cadas do s�culo 19. A cidade estava se espraiando, e foi solicitado a um grupo de tr�s engenheiros, entre os quais o futuro prefeito Pereira Passos, o primeiro plano diretor do munic�pio do Rio, em 1874.

Esta equipe fez uma proposta correta: alargar as ruas do velho Centro, preservando as edifica��es hist�ricas, e propor um novo centro na regi�o de Vila Isabel, Andara� e Tijuca, em dire��o � zona norte. Se esse projeto fosse inteiramente aplicado, n�o ter�amos o caos de hoje.

Na �poca o projeto contemplou o porto, perfeitamente integrado � cidade, com tr�s avenidas: Rodrigues Alves, Francisco Bicalho e Central. Uma porta de entrada que virou cart�o postal. Diferentemente do que ocorreu em Barcelona, Lisboa ou Buenos Aires, com portos afastados e escondidos. S�o concep��es urban�sticas diferentes.

Como contrapartida do dinheiro investido no Porto Maravilha, a prefeitura quer preservar �reas hist�ricas. Ainda � poss�vel?

O que est�o fazendo no morro da Concei��o e no Largo de S�o Francisco da Prainha? Nada. O que vai acontecer � �bvio: os propriet�rios v�o vender os im�veis. Ent�o a vida acabou. A hist�ria acabou. A regi�o, mesmo que preserve o casario, vai se transformar em mais um centro de com�rcio. Depois arrumam algumas pessoas para cantar samba, e est� tudo bem. Qual a rela��o do Porto Maravilha com a sua vizinhan�a e o restante da cidade? Tudo se resume ao seguinte argumento: construir torres de 50 andares. E pronto.

A amplia��o das linhas do metr�, BRTs, VLTs v�o solucionar o problema de transporte?

O pa�s fez a op��o de enfrentar a crise econ�mica vendendo carro. Em dez anos multiplicou-se a frota de ve�culos particulares. Em rela��o ao transporte p�blico de massa n�o se fez nada. N�o precisa ser um t�cnico para perceber que essa equa��o � imposs�vel de resolver.

Os VLTs da avenida Rio Branco s�o outro problema grave. N�o se coloca ve�culo pesado em centro hist�rico. Nenhuma cidade do mundo faz ou fez isso.

O metr� deveria seguir o projeto original antigo, ligando Barra da Tijuca � esta��o da Carioca, passando por G�vea, Jardim Bot�nico, Humait�, Dona Marta, Laranjeiras, direto ao Centro. Na Esta��o de Laranjeiras, poderia seguir um ramal para Rio Comprido, Samb�dromo, pra�a Cruz Vermelha. Era um conceito simples de levar o metr� aos maiores pontos de concentra��o, que foi abandonado.

Que acha da "morte" do elevado da Perimetral?

Sempre me opus � derrubada do elevado, mesmo achando que nunca deveria ter sido erguido. � um exemplo t�pico de falta de planejamento. Todas as obras atuais poderiam ter sido feitas com a Perimetral de p�, para evitar o impacto e o caos das a��es. Depois, se fosse o caso, ela seria derrubada.

O crescimento da cidade em dire��o � zona oeste ainda � vi�vel ou est� esgotado?

A expans�o � zona oeste � ainda perfeitamente vi�vel. Uma excelente sa�da, desde que se tenham novas linhas de metr� e trens, e n�o BRTs ou VLTs, que t�m a fun��o de liga��o entre as grandes redes e n�o a de fazer transporte de massa.

Confunde-se a zona oeste apenas com a Barra da Tijuca, e a� se aproveitam para dizer que est�o fazendo obras na regi�o. A rigor, a Barra � regi�o da orla, que acompanha a zona sul. Representa uma vis�o discriminat�ria e elitista, um projeto dos anos 1970 que n�o previu transporte coletivo nem esgoto, muito menos habita��o popular.

Na �poca os empres�rios disseram que s� precisariam de acesso e uma grande avenida, e ali nasceria uma cidade ecol�gica. No entanto, surgiram favelas e as lagoas est�o morrendo. A Barra � exemplar da vis�o da cidade como mercadoria para A ou B ganhar dinheiro.

O Rio continua uma cidade partida?

Continua partida entre a favela e o asfalto. E pior ainda: bipartida, porque mesmo no asfalto existem �reas mais ou menos assistidas e outras abandonadas.

Que impacto pode-se esperar da Olimp�ada em 2016?

Peguemos a Ba�a de Guanabara. J� se admite que a polui��o vai continuar. Mesmo assim, alguma coisa dever� ser feita na parte que banha o Rio mais rico e vis�vel. Mas a ba�a � um conjunto, que inclui Ilha do Governador, Niter�i, S�o Gon�alo, Duque de Caxias, Nil�polis, Belford Roxo, Mag�, entre outros munic�pios. Estes n�o ter�o melhoria alguma, pode apostar.

Ainda � poss�vel identificar a cidade do passado?

O centro do Rio hoje n�o tem um n�cleo. S�o retalhos, s�o fragmentos que escaparam � destrui��o orquestrada pela especula��o imobili�ria com a coniv�ncia do poder p�blico. O largo da Carioca, onde esteve o primeiro chafariz, em 1723, e ainda est� o convento de Santo Ant�nio, � aquilo que se v�: para poder admir�-lo, � preciso esquecer o entorno. Resta-nos entrar no claustro e rezar, sonhando com o passado.

Qual o melhor presente que o Rio pode receber?

Hoje, aos 450 anos, poder�amos estar subindo o morro do Castelo para admirar a obra de Mem de S�. Foi demolido por puro preconceito, porque naquele momento s� morava pobre l�. E houve quem aplaudisse a iniciativa, por ter sido retirado um "quisto" da cidade. A ponto de o prefeito Carlos Sampaio ter dito que o morro do Castelo era um dente cariado na boca de uma mo�a bonita. S� dois loucos foram para a imprensa e se colocaram contra a derrubada: Lima Barreto e Monteiro Lobato.
Como n�o posso pedir de presente a volta do morro do Castelo, gostaria de ver uma administra��o p�blica, formada por t�cnicos de qualidade, e que tenha continuidade. Que n�o destrua o que o antecessor porventura tiver feito de bom.

O senhor � especialista no per�odo do Rio colonial. O que nos restou daquela �poca em termos de tradi��o cultural?

Nossa capacidade da festa. Desde sempre a cidade soube se transformar, em poucos dias, para saudar a chegada de uma personalidade importante ou para lembrar uma data relevante. Esse esp�rito coletivo de organiza��o e hospitalidade ficou. O Carnaval � um exemplo perfeito. Mais recentemente, a vinda do papa Francisco � outro exemplo.


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