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Boas práticas

Vítimas esquecidas

Science destaca os prejuízos para alunos de pós-graduação em laboratórios envolvidos em má conduta

Um editorial da revista Science assinado pelo químico Herbert Holden Thorp, editor-chefe do periódico, chamou a atenção para o trauma e os prejuízos que escândalos de má conduta em grandes grupos de pesquisa provocam em seus estudantes de pós-graduação, cuja formação pode ficar comprometida em meio ao tumulto causado por investigações de fraudes e que raramente encontram apoio adequado das instituições a que estão vinculados.

Intitulado “Vítimas esquecidas da má conduta”, o editorial menciona o caso do cientista de materiais Ranga Dias, da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, que relatou ter sintetizado o que seriam os primeiros materiais supercondutores – capazes de conduzir eletricidade sem resistência – em temperatura ambiente. Dois artigos relacionados a tais descobertas, publicados na revista Nature em 2022 e 2023, acabaram sendo retratados por inconsistência nos dados, assim como aconteceu com um terceiro paper do grupo sobre as propriedades elétricas de um material, publicado na revista Physical Review Letters.

O foco do editorial são os estudantes que atuavam no grupo de Dias. Três investigações feitas pela Universidade de Rochester sobre o trabalho do grupo não haviam encontrado qualquer irregularidade – em nenhuma delas os alunos foram consultados. Só na quarta apuração houve o cuidado de procurar os estudantes e ouvir seus relatos. Segundo um porta-voz da Universidade de Rochester, o painel independente de especialistas concluiu recentemente essa quarta investigação e apontou “preocupações com a confiabilidade dos dados” nos estudos de Dias.

Apenas em agosto de 2023 o cientista de materiais foi afastado oficialmente da supervisão de estudantes em seu laboratório. Thorp faz alusão a uma reportagem recente publicada pela revista Nature, que reuniu indícios de que Dias distorceu as evidências da supercondutividade à temperatura ambiente, escondeu informações dos seus alunos e os manipulou e excluiu de etapas importantes da pesquisa. A reportagem ouviu os estudantes, sem citar seus nomes, e os relatos revelam indignação, medo e abandono. “Esperávamos que alguém viesse falar conosco”, disse um aluno. “Isso nunca aconteceu.” Outro estudante demonstrou receio de que sua pesquisa de doutorado seja invalidada. “Minha tese vai estar cheia de dados fabricados”, afirmou.

Medições feitas pelos alunos no laboratório não corroboravam as conclusões de Dias, mas o pesquisador esquivou-se, com o argumento de que estava utilizando dados obtidos antes de trabalhar em Rochester. Em outro momento, os alunos interpelaram Dias por, na versão preliminar de um artigo, descrever a forma como um determinado composto era sintetizado, quando, na verdade, ele usara o composto comprado pronto. O pesquisador rejeitou as alegações dos alunos, dizendo que em nenhum ponto do artigo afirmara explicitamente que tinha sintetizado a substância. Segundo o relato dos estudantes, também havia dúvidas sobre dados de pressão relatados no rascunho. “Nenhum desses pontos de pressão corresponde a nada que realmente medimos”, disse um aluno. Os estudantes disseram à revista Nature que Dias lhes deu um ultimato: se não confiavam nos resultados, que retirassem seus nomes do trabalho. “Me lembro de ter ficado muito intimidado”, afirmou um aluno, que disse se arrepender de não ter insistido mais com o orientador. “É assustador. E se eu fizer isso e ele desgraçar o resto da minha vida?”

Em uma gravação feita pelos alunos, Dias afirmou que usaria todos os meios possíveis – inclusive a influência da universidade – para evitar a retratação de artigos, ressaltou Thorp no editorial. Na avaliação do editor-chefe da Science, a resposta da Universidade de Rochester não foi diferente da de outras universidades em situações parecidas. “Essas investigações demoram sempre muito tempo, são envoltas em segredo e conduzem a declarações públicas elaboradas por advogados e consultores de crise que são evasivas e incompletas. Isso precisa mudar”, escreveu. “Ao evitar as perguntas difíceis, cria-se a impressão de que mais fatos estão sendo suprimidos. O mais devastador é que isso também envia a mensagem de que os estudantes não são uma prioridade”, afirma o editor-chefe. Ele emenda perguntas importantes para o futuro dos estudantes: “A universidade vai estender o apoio financeiro enquanto os alunos fazem a transição para novos laboratórios? A instituição tomará atitudes para garantir que as aspirações profissionais dos estudantes não sejam destruídas ou que as suas carreiras não sejam de alguma forma manchadas pela experiência? A universidade pedirá desculpas por não ter agido mais cedo na busca da opinião dos alunos? Se Dias mudar para outro emprego, a universidade fará algo para garantir que ele não retaliará os seus ex-alunos por dizerem a verdade?”.

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