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Resenhas

O foco no topo

Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade | Marcelo Medeiros | Companhia das Letras | 192 páginas | R$ 79,90

O final de 2023 reservou grata surpresa ao leitor interessado em deslindar um dos maiores traços definidores da nação brasileira, nossa profunda e arraigada desigualdade. Refiro-me à publicação do livro Os ricos e os pobres, do sociólogo Marcelo Medeiros.

Regularmente somos expostos a números nas alturas sobre essa desigualdade, como o índice de Gini, e a comparações vergonhosas com outros países, mais ricos, mais pobres, ou médios, como nós. O espanto e a perplexidade, sentimentos que se sucedem a cada nova velha notícia, acabam por se incorporar à nossa identidade como um fado e a obliterar reflexão posterior. Eis o que somos, nada mais.

Um dos grandes méritos da obra é sacudir a paralisia e avançar sobre campo ainda pouco (re)conhecido. Nossa desigualdade tem características muito próprias.

O Brasil é um país habitado por um povo basicamente pobre e uma diminuta elite rica, muito rica, conclui o autor. Ao contrário de postular uma linha de pobreza e observar os abaixo e os acima dela, a perspectiva do autor está voltada para o topo e busca a linha ou a região na distribuição de renda que separa a elite do resto. Ao fazer isso, inevitavelmente integra a análise da pobreza com a análise da desigualdade. Medeiros nos conduz por um passeio ao longo da distribuição de renda, mostrando quão pequenas são as diferenças de renda entre os grupos da população que compõem os 80% ou 90% mais pobres. As diferenças, que eram suaves dentro desse grande grupo, tornam-se abruptas conforme nos aproximamos do reino dos 10% mais ricos e mais ainda quando isolamos o 1% ou 0,1% do topo.

Implicações são discutidas em alguma medida na obra. A que merece maior atenção é a educação. Medeiros é taxativo em rejeitar a possibilidade de qualquer política educacional reverter ou mesmo mitigar de modo significativo as desigualdades tais como configuradas em sua análise. Ele se apoia em simulações para sustentar que mesmo um esforço brutal de expansão educacional não reduziria substancialmente nossa desigualdade. Trata-se de contraponto à insistência – comum em trabalhos acadêmicos e na cultura de organismos multilaterais – em defender a educação como a bala de prata capaz de eliminar desigualdades. Ora, se a desigualdade é puxada pelo topo, por que insistir na educação como solução? Há trabalhos, do próprio Medeiros inclusive, que mostram o descolamento entre a riqueza dos ricos e sua escolaridade. O autor reconhece ser a educação essencial para outras coisas, não para a redução de desigualdades de renda.

A despeito de muito úteis, exercícios de simulação que associam poucas variáveis dentro de um ambiente complexo têm limitações intrínsecas. Pode-se ainda assinalar, a título de contraponto, os conhecidos efeitos do acesso ao ensino superior e à educação infantil sobre as desigualdades, bem como a importância de credenciais conferidas por instituições de prestígio e das redes de relacionamentos que nelas se tecem. E reconhecer também que as desigualdades salariais (e os retornos à educação brasileiros) entre os 90% mais pobres estão entre as mais elevadas do mundo. Nada disso subtrai a hegemonia dos ricos na distribuição, convincentemente assinalada por Medeiros, ainda que relativize o juízo de inocuidade estendido à política educacional.

Se o foco deve ser o topo, a tributação sobre renda e riqueza precisa ser enfatizada, sugere o autor, o que não seria “nada do outro mundo”. Entretanto, esse ponto crucial é pouco desenvolvido no livro. A principal reforma sugerida se limita à integração tributária da renda e do patrimônio. O potencial da tributação sobre os ricos de financiar políticas amplas de redistribuição não é tratado. Mas a semente está lançada.

Há muito mais nesse pequeno livro que o recomenda ao leitor interessado, e essa minúscula resenha faz justiça apenas aos vieses da resenhista. Trata-se de uma obra que contribui para a compreensão da desigualdade econômica brasileira, da pobreza e da riqueza que nela convivem, escrita em linguagem agradável e acessível, por um dos maiores especialistas brasileiros no tema. Um bom trabalho se qualifica não apenas pelo que deslinda, mas também pelas questões que suscita. O livro de Medeiros acerta nos dois quesitos.

Celia Lessa Kerstenetzky é professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede).

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