Imprimir PDF Republicar

Entrevista

Físico Hans Herrmann explica por que as dunas são um sistema complexo fascinante

Pesquisador alemão radicado no Ceará estuda a formação e o movimento dos montes de areia esculpidos pelo vento

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPPara Herrmann, o canto das dunas é uma das características mais fascinantes dos montes de areia migratóriosLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Não foram as belas praias do ensolarado litoral cearense que levaram o físico-estatístico alemão Hans Jürgen Herrmann, de 70 anos, a escolher Fortaleza como sua casa durante oito meses do ano. Foi a oportunidade de estar perto de um de seus objetos de estudo mais intrigantes: as dunas da costa brasileira, em especial as de Jericoacoara, no Ceará, e os Lençóis Maranhenses, um parque nacional do Maranhão com uma área similar à da cidade de São Paulo.

Há quase três décadas, entre outros temas de física teórica, o especialista em sistemas complexos se dedica a entender a formação e a movimentação desses montes de areia moldados pela ação do vento. Para isso, a partir de parâmetros reais medidos em campo, tenta reproduzir, por meio de modelagem computacional, a gênese e o andar de diferentes tipos de dunas.

“Tecnicamente, dunas são instabilidades aerodinâmicas de uma superfície granular. Sua forma depende da quantidade de areia disponível e da direção do vento”, diz o físico, que nasceu em Cuba, foi criado na Colômbia e se graduou na Alemanha. “Elas são um dos fenômenos cotidianos que não compreendemos bem.”

Pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Escola Superior de Química e Física Industrial (ESPCI) de Paris, Herrmann esteve no início de março na sede da FAPESP, em São Paulo, onde deu uma conferência sobre o tema que o levou a trocar a Europa pelo Brasil.

Nesta entrevista, concedida após a apresentação, ele fala de seu trabalho e por que se fixou na capital cearense. Ali, diz, encontrou uma boa infraestrutura para ir a campo e enfiar o pé na areia, sempre que necessário, além de realizar seus cálculos e modelagens com o auxílio de colegas e alunos da universidade.

Por que um físico resolve estudar dunas?
Trabalho com física estatística e suas aplicações em diferentes áreas, como na engenharia e nas ciências sociais. Já estudei o cérebro, epidemias e a difusão de opiniões, por exemplo. Essas áreas parecem bem diferentes, mas elas usam uma matemática similar. São eventos coletivos, nos quais muitos agentes, juntos, criam fenômenos novos, que estão sempre em competição com a desordem. A interação entre esses agentes ou partículas é uma rede complexa, que pode exibir diferentes graus de liberdade. Portanto, esses fenômenos, como as transições de fase na termodinâmica, podem ser estudados como aplicações de uma mesma matemática. As dunas são um fenômeno complexo dos mais interessantes.

As dunas de Jericoacoara podem se movimentar 8 metros por ano por causa dos ventos fortes nessa península

O que o atraiu especificamente a estudar as dunas no Brasil?
Conheci o Brasil bem antes de começar a pesquisar sobre dunas. Em 1986, encontrei o Constantino Tsallis, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas [CBPF], em uma conferência em Montreal, no Canadá. Ele me convidou para visitar o país pela primeira vez. Vim e gostei tanto que disse para ele que queria voltar e ficar mais tempo. Ele conseguiu para mim uma bolsa da Fundação Guggenheim, dos Estados Unidos. Passei um ano no Rio de Janeiro com o Constantino, entre 1987 e 1988. Fizemos um trabalho sobre a origem da vida. Só iniciei os estudos com dunas quase 10 anos depois.

Como surgiu esse interesse?
Quando era diretor de um laboratório da ESPCI em Paris nos anos 1990, trabalhava com meios granulares e recebi alguns pós-doutorandos brasileiros. Com eles e alunos de outras nacionalidades, fizemos expedições para alguns campos de dunas em lugares como Marrocos e Ceará. Dunas são instabilidades aerodinâmicas de uma superfície granular. Sua areia vem do mar, trazida pelo vento. Em 1996, fiz contato com um professor de física da UFC que tinha sido meu pós-doc e conheci com ele as dunas de Jericoacoara, que pareceram muito interessantes. Trabalhamos com o Instituto de Ciência do Mar – Labomar, da UFC, especializado em manejo de dunas. Gostei muito da UFC. Vinte anos atrás comprei um apartamento em Fortaleza e agora moro lá. Fico no Brasil de setembro a abril. O resto do ano estou em viagem no exterior. Não dou mais aula, mas tenho afiliações. Em Paris, o laboratório do qual fui diretor por anos ainda mantém uma sala para mim. Mas não oriento estudantes na Europa, apenas no Ceará.

Há algo diferente nas dunas do Ceará?
Há dunas em todos os lugares do mundo. Só no Brasil, temos dunas costeiras ao longo de mais de 3 mil quilômetros [km], desde o Rio Grande do Sul até o Pará. A maior parte delas é de dunas parabólicas fossilizadas, formações antigas, mais planas, praticamente cobertas pela ação do tempo. Mas onde há vento forte formam-se dunas migratórias. Esse é o caso de Jericoacoara, que tem grandes dunas móveis. É mais fácil fazer medições em dunas grandes, que são estáveis e simétricas. Elas apresentam menos flutuações e fornecem dados com menor margem de erro do que as dunas menores. Jericoacoara tem a maior barcana [duna em formato de lua crescente] migratória do mundo, com mais ou menos 2 km de largura e que chega a se movimentar 8 metros [m] por ano por causa dos ventos fortes nessa península.

Em outros lugares, não há grandes dunas móveis?
Há, sim. Mas as condições de trabalho no Ceará são melhores. Lá há uma boa equipe de pesquisadores na área de física e no Labomar, infraestrutura e paz. Em muitos lugares, é difícil o acesso às dunas por motivos políticos ou de segurança. Em Marrocos, por exemplo, há campos minados perto das áreas de dunas.

O que determina a forma de uma duna?
Existem vários tipos de dunas: transversais, barcanas, longitudinais, parabólicas. Cada forma surge em razão da quantidade de areia disponível e da direção do vento. Se o vento sopra sempre na mesma direção e há muita areia, formam-se dunas transversais. Se há menos areia à disposição, formam-se as barcanas. Há campos de barcanas também em Marte.

NidoHuebl / Getty ImagesLençóis Maranhenses, um dos lugares com dunas estudados pelo físicoNidoHuebl / Getty Images

Por que há tantas dunas fósseis no litoral do Brasil?
Elas existem em todo o mundo, mas aqui são muito bem preservadas. Elas existem porque, no litoral brasileiro, há muito vento e muita vegetação. Esses dois elementos competem entre si. A vegetação de praia impede a movimentação dos montes de areia, que, com o tempo, se tornam mais planos e perdem sua forma original.

Como as características dos grãos de areia afetam uma duna?
Os grãos apresentam dois parâmetros importantes: tamanho e rugosidade da superfície. Eles são fundamentais para explicar seu movimento e empacotamento [distribuição dos grãos e do espaço entre eles]. A rugosidade tem a ver com a idade. Um grão novo, que vem da fragmentação de uma rocha, é bem rugoso. O mais antigo é redondo, liso, o que gera dunas menos estáveis. Os grãos grandes ficam na parte inferior da duna e formam um anel de partículas maiores que se move mais lentamente. Os pequenos, que têm maior mobilidade, ficam na parte superior. A duna monta essa estrutura combinada naturalmente.

Qual a propriedade mais surpreendente das dunas?
O que eu mais gosto é o fenômeno que chamo de ondas solitárias ou solitões. A forma da duna se preserva mesmo depois da colisão de duas delas. Essa propriedade, de invariância da forma, é fascinante. Ela não ocorre sempre, apenas em certos tipos de colisão. Do ponto de vista matemático, é algo muito bonito. Existe até uma equação, que não é perfeita, que soluciona a colisão de duas barcanas [nesse caso, uma barcana menor se movimenta mais rapidamente e alcança a maior, com a qual troca grãos]. As dunas têm outras propriedades interessantes. Mas a que mais cria controvérsia hoje é o seu canto.

O que é o canto das dunas?
É o som das avalanches de areia em dunas grandes, com até 100 metros de altura. É um barulho enorme que pode passar de 100 decibéis e ser ouvido até a 20 km de distância. Pode lembrar o som de uma orquestra ou de um violino conferindo a afinação ou de um jato voando baixo. O vento faz as dunas se moverem. Quando há muita areia acumulada em sua crista, os grãos começam a descer não de forma contínua, mas como uma avalanche. A duna fica dois ou três minutos cantando, enquanto a areia vai descendo, e depois se cala. Nem toda duna canta. Só uns 10% delas cantam. É um fenômeno complicado, que tem a ver com características do grão de areia, mas ninguém sabe exatamente que tipo de onda cria esse som. Há teorias completamente contraditórias que tentam explicar o fenômeno. Esse é um problema não resolvido. Cada duna canta de um jeito. As mais famosas estão nos Estados Unidos e no norte da África. Algumas do Brasil também cantam. Na minha apresentação, mostrei cinco exemplos de cantos, registrados pelo físico francês Stéphane Douady. É possível criar avalanches artificiais como ele faz, correndo sobre a crista de uma duna. Já fiz isso com bugues. No meu grupo, ninguém estuda o canto das dunas.

Que tipo de pesquisa está fazendo agora com dunas?
No Ceará, o único trabalho que estamos fazendo no momento é com paliçadas artificiais, pequenas paredes de plástico que colocamos no chão para desviar a corrente de ar. Usamos essas estruturas para estimular a passagem de areia e fixar as dunas. Hoje meu trabalho com dunas ocorre mais em parceria com um grupo da Universidade de Lanzhou, da China. Tenho um contrato pequeno com eles e passo duas semanas por ano lá, dando uma espécie de consultoria. É maravilhoso. Eles têm muitos estudantes. O problema deles é frear a expansão da desertificação no sul do deserto de Gobi, onde estão plantando árvores e criando uma floresta. Ajudo nos trabalhos sobre transporte eólico de grãos de areia. Nessa área da China, é muito seco, não há muita chuva e vegetação natural. Mas eles têm muito dinheiro, gente e trabalham rápido.

Com quais outros temas da área de física está trabalhando no momento?
No Ceará, voltei a fazer pesquisa com temas mais fundamentais da física estatística, como percolação em experimentos com coloides [sistemas aparentemente homogêneos, mas que são constituídos de duas fases da matéria]. Estudamos dois coloides simultâneos. Cada um forma um tipo de gel diferente, que não penetra no outro. Estamos desenvolvendo modelos que mostram a criação desses géis e suas características. Também estou fazendo outro trabalho sobre a forma das costas marítimas, que são fractais [objeto geométrico fragmentado e irregular, cuja estrutura se repete em diferentes escalas]. É um trabalho teórico para explicar a fractalidade da costa.

Republicar