Rastreamento ecocardiográfico pode detectar doenças cardíacas precocemente e auxiliar priorização em filas de espera para exames

Teresa Santos (colaborou Dra. llana Polistchuck)

Notificação

2 de novembro de 2018

A implantação de rastreamento ecocardiográfico na atenção primária parece ser uma medida viável no Brasil. É o que mostra um estudo realizado em cidades do sudeste de Minas Gerais e publicado em setembro deste ano no periódico Heart (British Cardiac Society).[1]

No trabalho, que é um desdobramento do Programa de Rastreamento da Valvopatia Reumática (PROVAR+), a triagem foi realizada com ecocardiograma portátil por profissionais de saúde não médicos treinados, e a interpretação dos resultados foi feita por telemedicina por médicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Children's National Health System, nos Estados Unidos. O autor Dr. Bruno Ramos Nascimento, médico cardiologista do HC-UFMG e professor da faculdade de medicina da UFMG, concedeu entrevista ao Medscape.

Projeto PROVAR+

O PROVAR+ é uma iniciativa de realização de rastreamento ecocardiográfico da cardiopatia reumática por não médicos em regiões de baixas condições socioeconômicas na América do Sul. Fruto da colaboração da UFMG com o Children's National Health System de Washington (EUA), a iniciativa, financiada pela Edwards Lifesciences Foundation e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), iniciou-se em escolas da região metropolitana de Belo Horizonte e de Montes Claros. Em suas fases iniciais, além do rastreamento ecocardiográfico de cerca de 12.000 crianças, contou com processo educativo de mais de 20.000 estudantes. [2,3]

A interpretação dos exames foi realizada por médicos especialistas de acordo com as diretrizes da World Heart Federation, pelo sistema de computação em nuvem para armazenamento e análise das imagens. As crianças com exames alterados (borderline e definitivos) foram encaminhadas para o Serviço de Ecocardiografia do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG para realização de ecocardiograma completo.

Em uma segunda fase – premiada como melhor Tema Livre Oral (pesquisador sênior) na 73ª edição do Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado em setembro em Brasília – o projeto foi ampliado para centros de saúde de atenção primária. Segundo o Dr. Bruno, o objetivo foi alcançar melhor integração do projeto com as comunidades. Nessa etapa, mais de 10.000 membros da comunidade receberam o processo educativo sobre doença cardiovascular e cerca de 3.500 ecocardiografias foram realizadas. Dados das intervenções feitas nas cidades de Nova Lima e Montes Claros foram analisados na publicação desse ano do periódico Heart.

Análise mostra alta prevalência de doença cardíaca em assintomáticos

Vinte profissionais de saúde, entre eles quatro médicos, quatro enfermeiras e 12 técnicos, de 16 centros de atenção primária de saúde (APS) de Nova Lima e Montes Claros, receberam treinamento para realização de ecocardiografia. Além de capacitação à distância, com módulos educativos on-line, os profissionais fizeram treinamento local (nos centros de saúde ou no HC-UFMG), conduzido por médicos ecocardiografistas. Agentes comunitários de saúde também foram treinados para fornecer educação sobre doença cardíaca durante as visitas domiciliares.

Entre os usuários dos serviços dos centros de APS, 299 indivíduos assintomáticos foram alocados no grupo controle, divididos em três grupos: de 17 a 20 anos, de 35 a 40 anos e entre 60 e 65 anos. Além disso, a amostra incluiu 705 pacientes que foram previamente referenciados para a realização de ecocardiografia. A média de idade dos pacientes foi de 51 anos e 63,9% eram mulheres.

Os profissionais treinados realizaram ecocardiogramas simplificados nos participantes com equipamento portátil e médicos especialistas interpretaram todos os resultados por telemedicina. Doença cardíaca significante foi observada em 354 participantes (35,3%).

Analisando por grupo, achados relevantes foram observados em 23,4% dos participantes do grupo controle e em 40,3% do grupo referenciado. Foram consideradas doenças cardíacas significativas: doença valvar de moderada à grave (regurgitação ou estenose), disfunção/hipertrofia ventricular, cardiopatia congênita, derrame pericárdico ou qualquer anormalidade segmentar de contratilidade.

Apesar da prevalência maior de anormalidades no grupo referenciado, tal como esperado, os autores notaram carga importante de doença valvar e envolvimento do ventrículo esquerdo no grupo controle de pacientes assintomáticos. Achados sugestivos de cardiopatia reumática foram identificados em 2% dos pacientes do grupo controle e em 2,3% do grupo referenciado.

Ao considerar apenas o grupo controle, houve prevalência significativamente maior de doença cardíaca em pacientes entre 60 e 65 anos. Quando os autores compararam apenas os indivíduos da faixa etária mais elevada do grupo controle com os do grupo referenciado, ainda assim, a taxa de doença foi superior no último. Por outro lado, houve similaridade entre os dois grupos quando se considerou as faixas etárias mais jovens.

O Dr. Bruno explicou que "os resultados de prevalência de cardiopatias detectadas ao eco foram superiores às esperadas, mas, de certa forma, semelhantes a estudos anteriores em outros países – este foi o primeiro do tipo na América Latina–, como o ASE-REWARD – estudo da American Society of Echocardiography, conduzido no norte da índia, em um comunidade rural". [4]

Segundo o Dr. Bruno, foi "surpreendente" o número de alterações nas populações das três faixas etárias de rastreamento sistemático, ou seja, entre os pacientes assintomáticos de 17 a 20, de 35 a 40, e entre 60 e 65 anos. O cardiologista também considerou como "surpreendente" o fato de que, na população referenciada (que aguardava por um eco ou cujo exame foi solicitado ao estudo pela equipe de atenção primária), grande proporção dos pacientes (aproximadamente 60%) não tinha alterações significativas.

"Isto significa que a estratégia pode tanto detectar doenças cardíacas precocemente, quanto ajudar a priorizar e a racionalizar filas de espera por exames. Vale ressaltar que nem todas as cardiopatias detectadas são graves, requerendo intervenções imediatas: a maioria tem estágios iniciais a intermediários, situação em que o monitoramento e a observação clínica podem evitar a progressão para estágios mais avançados", destacou.

Para o médico, o estudo aponta para uma alarmante prevalência de alterações ecocardiográficas em populações de baixa renda, inclusive em grupos de pacientes assintomáticos, ratificando a relevância do rastreamento ecocardiográfico. No entanto, a recomendação definitiva para implantação dessa estratégia nos centros de APS ainda necessita de avaliações de viabilidade econômica e de custo-efetividade, ainda em andamento.

"Acreditamos, entretanto, que a utilização de métodos diagnósticos simplificados e de menor custo, como o eco de rastreamento, que possam chegar às populações de forma mais ampla, e a utilização de telemedicina para diagnóstico a distância são tendências mundiais para prover cuidados à saúde a populações de baixa renda. Este método, caso se prove custo-efetivo, pode ser útil tanto para o diagnóstico precoce quanto para a organização e priorização de filas de espera por exames de maior complexidade (como o eco convencional) no sistema público de saúde. E, principalmente, nas faixas etárias de 14 a 18 anos – para avaliação de cardiopatia reumática – e em indivíduos com 60 anos ou mais atendidos nos serviços de saúde", disse. No entanto, caso se considere a adoção da estratégia como prática clínica no futuro, serão necessárias adaptações nas regulamentações normativas para aquisição de imagens ecocardiográficas no Brasil.

Portátil vs. convencional

O ecocardiograma portátil tem o objetivo de realizar diagnósticos iniciais, triando pacientes com alterações para serem examinados com aparelhos convencionais posteriormente. Segundo o cardiologista, as principais limitações são a penetração menor do ultrassom, a ausência de recursos como Doppler espectral, strain tecidual e outras modalidades mais avançadas de processamento de imagem.

"Além disso, há limitação de tempo de bateria, requerendo substituição ou recarga ao longo do dia. No entanto, vários avanços têm sido feitos em relação a estes dispositivos, nas versões mais recentes, a fim de se superar estes obstáculos", destacou. E acrescentou: "por conta dessas limitações, pacientes com rastreamento alterado precisam ser encaminhados para realização de ecocardiograma completo feito necessariamente por médicos ecocardiografistas".

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