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    O médico Renato Kalil nega as acusações feitas por Shantal, assim como as de outras mulheres, que relatam assédio sexual e moral

questões criminais

Decisões sobre um parto sem paz

O STJ começou a julgar Renato Kalil pelo parto de Shantal Verdelho, com primeiro voto contrário à acusação de violência psicológica. O processo mostra que o incômodo começou no pré-natal

João Batista Jr., de São Paulo | 21 jun 2024_08h04
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Na terça, dia 18, a 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça começou a julgar ação movida pelo Ministério Público de São Paulo contra o médico Renato Kalil. São duas as denúncias oferecidas: lesão corporal e violência psicológica.

A iniciativa do MP se deu após a veiculação dos vídeos do parto da segunda filha do casal de influencers Shantal e Mateus Verdelho, em setembro de 2022. As cenas do parto realizado dentro do Hospital São Luiz, da Rede D’Or, em São Paulo, mostraram o obstetra usando termos como: “merda da bexiga”, “puta da bexiga”, “faz força, porra”, “não mexe, porra”, “parece que você está aí meditando”, “ela não faz força, essa viadinha”, “sua filha da… [sem concluir a frase]”, “você não faz força direito”, “a cabeça… não sabe, porra! Você só… A hora que você apoia o pé”, “Descansou, descansou, parou. Muita falação. Você está sem coordenação. Já tinha nascido faz uma meia hora aqui”, “Não se mexe, porra”, “Que ódio”, “Olha aqui o tanto que rasgou”, “Ficou toda arrebentada” e “Vou ter que dar um monte de pontos na perereca dela”.

As imagens foram interpretadas pela Promotoria como um caso claro de violência obstétrica, que são os maus-tratos físicos, verbais e psicológicos no decorrer do pré-natal ao pós-parto. Eles podem abranger desde tratamento rude, comentários depreciativos até procedimentos sem a anuência da paciente. Não existe um tipo penal específico para a violência obstétrica no Brasil, então casos assim costumam ser enquadrados no espectro da violência psicológica.

O relator do caso no STJ, o ministro Ribeiro Dantas, manteve a denúncia por lesão corporal, mas rejeitou o crime de violência psicológica. O caso teve pedido de vista e foi suspenso, com prazo para ser retomado em até sessenta dias. Disse o ministro Dantas sobre a lesão corporal: “As filmagens do fato, os depoimentos de pessoas que o acompanharam e o laudo médico particular corroboram as alegações do Ministério Público sobre a possibilidade de ocorrência das lesões corporais”.

Para refutar a condenação por violência psicológica, alegou  uma questão técnica: “As mesmas ofensas proferidas no momento do parto que justificaram a inclusão do artigo 147 na denúncia já foram imputadas ao réu em ação penal privada por injúria e difamação encerradas por transação penal.” Em outras palavras, o relator entendeu que os xingamentos foram abordados dentro do processo por difamação e injúria movido por Shantal na esfera privada, daí não competir mais à denúncia movida pelo Ministério Público em prol do interesse coletivo. 

“As questões não se excluem. Nos xingamentos e humilhações que o réu provocou na minha cliente Shantal, tem os dois crimes: injúria e violência psicológica. O interesse coletivo existe justamente para que se crie o entendimento sobre o assunto e proteja outras mulheres que passam pelo mesmo tipo de violência”, diz Sergei Cobra Arbex, advogado de Shantal.

A 5ª turma do STJ é composta por cinco ministros, quatro homens e uma mulher. Além de Ribeiro Dantas, são eles Daniela Teixeira, Joel Ilan Paciornik, Messod Azulay Neto e Reynaldo Soares.

Daniela tem um histórico na defesa de questões femininas. Quando era vice-presidente da OAB no Distrito Federal, elaborou o projeto de lei federal 13.363, criado em novembro de 2016, que dispensa gestantes e lactantes de passar por aparelhos de raio X ao entrar em fóruns e tribunais. As advogadas, em muitos casos, tinham de passar por esse procedimento trinta vezes por semana, o que poderia prejudicar os bebês.

Recentemente, Daniela fez uma cirurgia no coração com o cardiologista Roberto Kalil Filho, irmão de Renato Kalil e médico de políticos como o presidente Lula.

A violência obstétrica, por se dar em um ambiente fechado e muitas vezes sem testemunha, pode ser difícil de ser comprovada. No caso de Shantal, há o vídeo, além de testemunhas presentes durante o parto, como a fotógrafa e a fisioterapeuta pélvica. “Não é possível achar o que vimos normal e pensar que se trata apenas de um interesse privado”, diz ela, que recebeu com tristeza o voto do relator.

Shantal conta que, mesmo após o seu vídeo ter circulado, recebeu apoio público de grande parte da população. “Mas algumas amigas me questionaram e não era exagero”, diz. “A voz da mulher é tão descredibilizada que, mesmo com vídeo, pensam que somos exageradas.”

A divulgação do vídeo motivou outras mulheres a fazerem denúncias contra Renato Kalil com acusações como assédio moral e sexual. Em uma reportagem do Fantástico, duas ex-pacientes e uma ex-funcionária relataram abusos por parte do obstetra. Ele nega qualquer comportamento inadequado. “Além dessa ação proposta pelo MP, não existe nada correndo na Justiça contra o Renato Kalil”, diz o advogado Celso Vilardi, que representa o médico. O MP mandou a polícia investigar a denúncia de outras três mulheres, cujos casos estão parados na 27ª Delegacia de Polícia de São Paulo.

O vídeo de Shantal viralizou de forma não intencional. “Eu vi essas cenas três meses após o parto, quando eu e Mateus caímos no choro. Eu não pensava em tornar isso público, iria viver com essa angústia para sempre”, diz a influenciadora. Mas ela ficou preocupada e quis alertar uma conhecida. Em um grupo de WhatsApp com cinquenta mães, uma das participantes escreveu que estava pensando em se consultar com Renato Kalil, quando Shantal encaminhou vídeos e áudios relatando a sua experiência. O material foi compartilhado e se espalhou. 

“A violência obstétrica não começou no parto, mas antes”, relata Shantal. Por volta da 22ª semana de gestação, ela precisou ser internada em razão de contrações indesejadas e risco de perda do bebê. No hospital, ela recebeu doses de um remédio chamado Inibina, um relaxante uterino indicado em casos de ameaça de abortamento.

Medicada e em cima de uma maca, Shantal recebeu um áudio de WhatsApp de Renato Kalil: “Ó, então faz um favor para o seu médico”, disse ele, no início do recado. O objetivo era dar instruções para ela postar em sua conta do Instagram, cujos stories chegam a ser visualizados por cerca de meio milhão de pessoas, conteúdo que o enaltecesse. “Quando você for elogiar a Rede D’Or São Luiz, já manda assim: ‘Ô, Rede D’Or, pelo amor de Deus, eu tenho visto o Dr. Kalil muito no [Hospital Albert] Einstein, que eu assisto os partos dele, vocês, Rede D’Or, não podem perder um médico desses. Esse médico tem de ser exclusivo São Luiz Rede D’Or, vocês estão de brincadeira?’, disse o médico em um áudio, orientando a paciente a falar na na postagem. Depois, ele finalizou o recado falando de si mesmo na terceira pessoa: “Tenta mostrar que é imprescindível a presença do Kalil na maternidade para a coisa funcionar”. 

Shantal, dentro de um quarto onde tomava Inibina para evitar o aborto, fez alguns stories: “Gente, vocês do São Luiz, vocês têm que trazer o Kalil mais para cá, as pacientes deles vão amar.” Quando o marido de Shantal chegou ao quarto já tendo visto o stories, perguntou o que havia acontecido. Ela contou que fez o que o médico havia pedido. “Eu estava com medo de perder a gestação e quis agradar quem em tese estava cuidando de mim. Eu faria qualquer coisa pela minha filha.”

Abaixo, o áudio enviado pelo médico e, na sequência, o vídeo publicado pela influenciadora no Instagram.

 

 

Shantal reforça que pagou integralmente por todo o trabalho de Kalil e do hospital. “Não houve alguma ou qualquer parceria, não fiz combinado de divulgação. Eu paguei tudo o que me foi cobrado ao longo da gestação inteira. Eu falei que não faria parceria – se eu falasse algo no Instagram, seria de forma orgânica. Mas desde o começo, ele puxou isso de eu divulgar. Ele tem um jeito de manipular, pediu para eu fazer uma live com ele na época da pandemia. Como ele falou muita abobrinha durante a live, eu fingi que caiu a internet e não salvei a live. Ele me falava: ‘Não acredito que não salvou a melhor live da minha vida.’”

O constrangimento foi imediato, mas a percepção da violência veio mais tarde. Após o parto, a influenciadora mandou mensagens agradecendo o médico. “Eu tive medo de perder o bebê, estava grata por minha filha ter nascido com saúde”, recorda. Kalil usa essas mensagens em sua defesa como forma de desqualificar a denúncia. Outro ponto da defesa de Kalil é o laudo do IML por lesão corporal. Realizado três meses após o parto, o exame resultou “inconclusivo”.

O caso está no STJ por um recurso do MP, após o Tribunal de Justiça de São Paulo ter pedido o arquivamento das ações por lesão corporal e violência psicológica. O desembargador Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira, da 25ª Vara Criminal, escreveu: “O caso impõe a todos a reflexão sobre a necessidade de se tomar muita cautela, mormente em um momento de grande desenvolvimento e da universalização da informação, onde heróis e vilões podem ser criados em momentos, bem como diante de pressões midiática cada vez maiores, para ser evitado o excesso e o equívoco.”

A queixa-crime movida por Shantal por difamação foi encerrada. Por se tratar de um crime de menor potencial ofensivo, Renato Kalil aceitou a proposta ofertada pelo representante do Ministério Público (Roberto Bacal) de uma transação penal – um acordo com a Justiça no qual o acusado aceita cumprir as determinações e as condições propostas pelo promotor em troca do arquivamento do processo. Ele pagou o total de 12.120 reais para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, de São Paulo.

Kalil cobra 2 mil reais pela consulta e faz partos no Vila Nova Star, da Rede D’Or, e no Albert Einstein, ambos em São Paulo. Também segue atendendo pacientes famosos. Há poucas semanas, o jogador Dudu, do Palmeiras, e a empresária Paula Caroline Campos tiveram filho com Kalil, no Vila Nova Star. Shantal e Mateus Verdelho acabaram de ter o terceiro filho no começo do mês, o Giuseppe.

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