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    Fé e Fúria Foto: Divulgação

colunistas

Guerra de extermínio

Documentário capta fortalecimento do poder das igrejas evangélicas no período pré-Bolsonaro

Eduardo Escorel | 12 out 2022_09h01
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Fé e Fúria (2019), de Marcos Pimentel, estreia amanhã (13/10) em cinemas de oito cidades, entre elas Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Salvador. O título esclarecedor indica o tema abordado no documentário – a coexistência de crença religiosa com intolerância, nem sempre perceptível para não praticantes, que resulta em uma guerra de extermínio. Pimentel é claro a esse respeito no press release: “… o filme registra episódios de intolerância, massacre de minorias, reações obscuras entre religião e poder, racismo, fascismo, Bíblia e Deus utilizados para justificar atos injustificáveis, poder armado, tráfico, milícia… É como se estivesse tudo ali, pairando sobre a sociedade brasileira…”

Gravado entre 2016 e 2018, Fé e Fúria capta o fortalecimento do poder das igrejas evangélicas no período anterior à eleição do atual ocupante provisório do Palácio da Alvorada, candidato no segundo turno da eleição presidencial, a ser realizada em 30 de outubro.

Concluído em 2019, ano em que estreou no IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdam, ao ser lançado agora, em plena campanha eleitoral, Fé e Fúria, além da abordagem reveladora da guerra movida contra religiões de matriz africana, mantém-se oportuno por salientar o componente bélico da competição pela Presidência da República. A própria linguagem jornalística é inequívoca a esse respeito ao enfatizar em manchetes, por exemplo, que “Campanhas… travam batalha pelo Nordeste” e “A ofensiva… para reduzir a vantagem… no Nordeste…” (O Globo, primeira página de 7 de outubro).

Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país, onde, além do Rio de Janeiro, Fé e Fúria foi gravado, é considerado uma síntese do Brasil. Em eleições presidenciais anteriores, o candidato eleito presidente da República venceu também no estado. Tradição mantida desta vez no primeiro turno – Lula teve 48,29% e o incumbente 43,6% dos votos em Minas, resultado quase idêntico ao da votação em âmbito nacional. Resta saber se o ex-presidente voltará a vencer em 30 de outubro, tanto no país quanto no estado, apesar do apoio ao incumbente declarado pelo governador eleito no primeiro turno. E até lá, como serão os próximos dezoito dias?

Custa a crer que o breve período que falta transcorrerá em calma, sendo de esperar, pelo contrário, confrontos políticos de gravidade variável que evoquem a guerra religiosa desvelada em Fé e Fúria. A julgar pelo belicismo do incumbente e de seu círculo de adeptos mais íntimos, assim como de parte de seus seguidores, sem esquecer sua própria vocação autoritária, pode-se considerar ao menos provável que o linguajar de sua campanha seja cada vez mais arbitrário e furioso com o propósito não apenas de vencer, mas de eliminar o adversário. Como isentar de responsabilidade por atentados que venham a ocorrer quem professa ações violentas e continua a pôr em dúvida o resultado das urnas?

Conforme Fé e Fúria demonstra em quatro capítulos nomeados como “guerreiros”, “guerra”, “armas” e “outras armas”, os evangélicos não fazem segredo do objetivo de eliminar as práticas religiosas de matriz africana. Na Avenida Cristiano Machado 8060, em Belo Horizonte, na placa acima da entrada está escrito: “Igreja Internacional Exército de Deus. Jesus é o General. ‘Prepare-se para uma Guerra Santa’ JL 3:9.” O pastor responsável e os fiéis que frequentam o local com certeza estão fartos de conhecer as palavras seguintes do profeta Joel no Antigo Testamento: “… chamem os soldados; que todos eles se apresentem e se aprontem para a batalha.”

O pastor Paulomar confirma em Fé e Fúria: “Nós estamos em guerra mesmo, né? Desde quando nascemos estamos em guerra com nós [sic], com o mundo, com o diabo. Então, Jesus Cristo é o general. A maior patente é de Jesus mesmo. Quem manda em tudo e em todos. Nós só temos que obedecer. Por isso vem aquela placa ali com o leão no meio, porque Jesus é também o leão.”

O pastor Marcelo explica, por sua vez, pouco adiante: “Essa linguagem bélica, essa linguagem militar é uma linguagem do Antigo Testamento. Então eles usam, se apropriam dessa linguagem para motivar os seus adeptos. Então, na teologia do Antigo Testamento… Deus é general. Deus é guerreiro. Deus é o vencedor das batalhas. Os próprios reis de Israel iam às guerras em nome do Senhor. Então, como isso está na bíblia, eles se apropriaram dessa linguagem, desse argumento, e adaptam, contextualizam seus fiéis.”

Os termos propagados incitam à formação de grupos paramilitares movidos por ódio contra adeptos de religiões não cristãs e homossexuais. Esse é o caso dos chamados “Gladiadores do Altar” da Igreja Universal, dos quais se teve notícia em 2015, e que, ao menos em tese, também poderiam ser mobilizados para ações fora do âmbito religioso e dos costumes.

Makota Celinha, mãe de santo, esclarece: “A partir do momento em que eu te peguei, que eu te doutrinei, eu te dominei, eu vou te preparar para esse enfrentamento. Aí criam-se os grupos paramilitares – exército de Deus, soldados de Jesus. E a palavra colocada pra eles é o ódio extremo por que o outro é seu inimigo.”

Fiel diante de altar flutuante – Foto: Divulgação

Fé e Fúria nos serve de advertência: estreia a tempo de alertar para o perigo de eleger pela segunda vez o atual presidente da República, cuja base de sustentação política inclui a bancada evangélica e a bancada da bala. Assistindo às múltiplas afirmações do elenco de 25 entrevistadas e entrevistados de Pimentel que formam o cerne de Fé e Fúria, constata-se com facilidade quão danoso é o conflito, mesmo quando considerado mera “guerra espiritual” e a palavra “guerra” pretende ter sentido metafórico. Fica nítido, além disso, o desequilíbrio de força existente entre evangélicos e os praticantes de religiões de matriz africana.

Para o Babalawo Ivanir, “se alguém nosso fizesse ‘Os Guerreiros de Ogum’ estava todo mundo na cadeia… Eu não tenho dúvida se aparecesse alguma liderança nossa e dissesse: ‘Vamos fazer Os guerreiros de Ogum para enfrentar isso’ [as agressões e violências sofridas] estava preso todo mundo. Estava criminalizado, a mídia estava dando bordoada, o Ministério Público já estava atuando e esses grupos, não… Porque é o poder econômico que eles têm por trás, é o poder de mídia que eles têm por trás, é o poder político que eles têm por trás de sua bancada. Então você vê o quanto é desigual essa luta. Então não pode ter guerra. O que temos é genocídio… da nossa cultura, dos nossos jovens. O que existe é isso.”

Some-se a essa avaliação o poder paralelo existente nas comunidades e nos presídios, abordado por Fé e Fúria em seu terço final. Fica clara, então, a gravidade que adquiriu para a estabilidade social do país as diferentes formas de associação existentes entre traficantes de drogas, igrejas evangélicas e milícias, cujas ramificações chegam ao alto escalão da República.

O que pastores evangélicos querem, de acordo com mãe Flávia, é “um casamento de interesse, né? Eles querem poder. O pastor aumenta a quantidade de dízimos. Ele fica à vontade para trabalhar ali, né? E o tráfico fica menos violento porque há um acordo de cavalheiros, se é que assim devemos dizer, e… menos violento, menos visível a violência, né? É importante essa correção. Antigamente, você encontrava… matava e os corpos ficavam estirados. Hoje em dia você só sabe que matou, não vê mais o corpo. Então têm as coisas que a igreja negocia, dizendo que não acontece mais isso porque ela pediu. Na verdade, é porque eles [o tráfico] não querem a polícia dentro da comunidade, né?”

Já próximo ao final de Fé e Fúria ressurge o tema da violência camuflada existente no país. O racismo arraigado desde sempre da sociedade brasileira emerge, então, como origem da perene guerra de extermínio existente no país.

*

Destaque (XIII):

“Bem, em primeiro lugar, eu acho que é difícil, para pessoas que não são brasileiras, ou que não vivem no Brasil, entender as complexidades da política brasileira e, portanto, elas dependem do que consideram ser as grandes instituições confiáveis da mídia, lideradas pela Globo e Folha e Abril e os outros grandes meios de comunicação que tendem todos a se basear no mesmo roteiro. E é claro que eles estavam abastecendo não apenas os brasileiros, mas o mundo, com o roteiro muito harmonizado que isso [referência à Lava-Jato] era o povo se levantando contra um governo corrupto. Então, eu creio que era difícil para pessoas fora do Brasil, incluindo até brasileiros que não viviam aqui, diferenciar toda a propaganda uma da outra, porque a mídia dominante brasileira é tão dominante, até quando comparada com a de outros países onde a mídia dominante pode realmente disseminar propaganda. Eu creio que há menos dissenso entre as narrativas da mídia no Brasil.” Glenn Greenwald aos 25’52” de A Fantástica Fábrica de Golpes, de Victor Fraga e Valnei Nunes. O documentário estreou em 23 de setembro e já teve mais de 88 mil visualizações no YouTube. Acesso disponível em https://youtu.be/M6ja8zpel

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