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GERADO EM: 28/06/2024 - 07:27

Fila de Cirurgias Trans no SUS: Programa PAES-PopTrans

Cirurgias de readequação genital para pessoas trans no SUS geram fila de mais de 10 anos em 7 estados. Novo programa PAES-PopTrans pode ampliar procedimentos. Acesso pelo SUS e planos de saúde são discutidos para atender demanda crescente.

Ainda em 2008, o Brasil instituiu no Sistema Único de Saúde (SUS) o chamado processo transexualizador, que engloba diversos procedimentos para pessoas transexuais, entre eles as cirurgias de readequação genital. Ainda assim, 16 anos depois, há somente dez serviços oficialmente habilitados para realizar a modalidade cirúrgica, em apenas sete estados, além de 22 na modalidade ambulatorial, que oferecem atendimentos como acompanhamento e hormonioterapia.

— A quantidade é insuficiente, leva pessoas a ficarem em média mais de dez anos na fila. Temos muitos estados que não têm nem serviço ambulatorial. É urgente a implementação de no mínimo um ambulatório em cada capital. E em relação a serviços na modalidade cirúrgica, precisamos de mais unidades e funcionando de forma efetiva. Eu, por exemplo, estou desde 2011 tentando entrar na fila, mas sem sucesso — conta Bruna Benevides, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), os serviços habilitados oficialmente estão no Hospital das Clínicas da UFG e no Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG), em Goiás; no Hospital Universitário da UFJF, em Minas Gerais; no Hospital Jean Bitar, no Pará; no Hospital das Clínicas da UFPE, em Pernambuco; no Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e no Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Júnior, no Rio Grande do Sul; no Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo, e no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), da Unirio, e no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Uerj, no Rio.

Além disso, o Hospital Estadual Mário Covas, em São Paulo, e o Hospital Universitário Professor Edgard Santos, da UFBA, na Bahia, também realizam o procedimento, mas não estão listados oficialmente como aptos na modalidade cirúrgica na plataforma do CNES.

Uma das mulheres que conseguiu acessar o direito à cirurgia pelo SUS, no Hupe, da Uerj, foi a pedagoga e musicista, Kathyla Katheryne, de 57 anos. Em 2016, após seis anos na fila, a doutoranda em Música pela Unirio foi chamada para realizar a operação, o que descreve como um “renascimento”:

— Quando a gente está na fila é muito angustiante, porque ficamos na expectativa, mas com medo de tudo. De que de repente o médico parar de fazer o procedimento, de entrar um governante que trave o programa. Ficamos muito à mercê. Mas, em outubro, completo oito anos do procedimento e estou muito satisfeita. Foi algo que eu desejava muito. Eu renasci, mudou totalmente minha percepção de vida, de mim mesma. É uma felicidade.

Kathyla Katheryne conseguiu realizar a cirurgia de readequação genital pelo SUS em 2016. — Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Kathyla Katheryne conseguiu realizar a cirurgia de readequação genital pelo SUS em 2016. — Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Ao todo, de acordo com dados do Ministério da Saúde, compilados pelo GLOBO a partir do DataSUS, 565 procedimentos foram realizados de readequação genital no Brasil desde 2008 pela rede pública. Em 2023, foi registrado o recorde de 53 cirurgias, 46 em mulheres e 7 em homens trans. Neste ano, até abril, foram 28. Para realizar a operação, é preciso ser maior de 21 anos e ter passado por acompanhamento clínico e hormonal por, pelo menos, 24 meses.

Mas Bruna, da Antra, destaca que ainda há muito a ser feito:

— Nos últimos governos, tivemos muitos anos sem atenção às pessoas trans nas políticas de saúde. Com a pandemia, chegamos a ter uma interrupção total dos serviços, e muitos não foram efetivamente restabelecidos. Em muitos lugares, a previsão é de apenas uma operação por mês, o que é muito pouco considerando que temos uma demanda reprimida.

Kathyla, que atua pela ampliação do acesso no Rio, cita que um dos entraves é que a oferta dos procedimentos no SUS é estabelecida por meio de portarias, mas não há ainda um programa nacional sobre o tema. No ano passado, o Ministério da Saúde formou um grupo de trabalho com esse objetivo, do qual Bruna, da Antra, fez parte. A presidente da associação cobra a pasta e diz ser urgente que o programa, cujo escopo já foi apresentado em fevereiro, saia do papel.

Em nota, o Ministério da Saúde disse que todo o normativo do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (PAES-PopTrans), como foi chamado, está “em tramitação interna para publicação” e que, entre outras ações, ele "prevê uma nova conformação de serviços hospitalares e das equipes como forma de distribuir melhor as demandas cirúrgicas e para o atendimento integral da população trans".

Mais formação de profissionais e acesso pelos planos de saúde

No Brasil, não há dados oficiais sobre a população transexual. Um estudo de pesquisadores da USP e da Unesp estimou que 0,69% dos brasileiros não se identifica com o gênero ao qual foram atribuídos ao nascer – o equivalente a cerca de 1,4 milhão de pessoas, com base no último Censo do IBGE.

— Não necessariamente toda pessoa trans quer passar pela cirurgia, o processo transexualizador é algo mais amplo, envolve etapas sociais, endocrinológicas, que dependem do desejo de cada um. O que a cirurgia trata é da disforia com o órgão genital, da sensação de incômodo com ele e o impacto disso na saúde mental — pontua André Cavalcanti, chefe do serviço de Urologia do HUGG, da Unirio, unidade vinculada à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).

O especialista em cirurgia reconstrutiva urogenital, que é responsável pelos procedimentos de readequação genital na unidade, cita que, apesar de ainda haver preconceito, o conhecimento sobre as técnicas tem sido mais disseminado entre os profissionais do país. Mas defende ser importante haver mais oportunidades de educação para médicos:

— É um procedimento que hoje tem etapas bem estabelecidas e complicações aceitáveis, com resultados estéticos e funcionais bastante adequados. Obviamente que o preconceito ainda existe, mas hoje vamos nos principais congressos do mundo de cirurgia plástica e urologia e esse é um tema frequente e discutido de forma aberta e séria. Isso mudou bastante. Só que precisamos ter mais oportunidades de ensino. Mais cursos, especializações na área, além de equipes multidisciplinares, que é o que leva aos melhores resultados do processo transexualizador.

E, no contexto de baixo acesso pelo SUS, uma alternativa que tem surgido no Brasil é a cobertura pelos planos de saúde. No ano passado, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) determinou que as operadoras são obrigadas a cobrir os custos das cirurgias. Como justificativa, citou que os procedimentos deixaram de ser considerados experimentais ainda em 2002 no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e que não se tratam de operações estéticas.

— A primeira coisa que levei para minha mãe quando me assumi como uma mulher trans foi o incômodo com meu órgão genital. Não é algo estético, eu queria fazer a cirurgia para melhorar meu aspecto emocional e físico. Antes eu passava o dia sem fazer xixi para não mexer muito na região. Me machucava extremamente, várias vezes tinha sangue nas roupas íntimas. Hoje eu amo me ver de biquíni, consigo usar legging de forma confortável para ir na academia, que eram coisas que eu me privava ou eu me machucava, porque usava quatro, cinco calcinhas para pressionar o órgão — conta Juliane Vezzani, estudante de Marketing e influenciadora digital de 19 anos.

A influenciadora digital trans Juliane Vezzani conseguiu realizar a cirurgia de redesignação sexual pelo plano de saúde. — Foto: Arquivo Pessoal
A influenciadora digital trans Juliane Vezzani conseguiu realizar a cirurgia de redesignação sexual pelo plano de saúde. — Foto: Arquivo Pessoal

Ela, que é da região de Campinas, São Paulo, conseguiu realizar o procedimento em janeiro deste ano na capital paulista com os custos pagos pelo plano de saúde. Mas conta que não foi simples, precisou rebater diversos argumentos da operadora até que liberassem a cirurgia:

— Eu e minha mãe nos informamos muito antes, eu sabia que era um direito meu. Logo na primeira solicitação para o plano o médico já deixou claro que eu fazia o acompanhamento necessário com terapia hormonal e com o psicólogo e que eu estava apta dentro da lei. Mas eles tentaram de todo tipo contestar. Semanalmente, davam uma justificativa diferente, citando resoluções que nem eram mais válidas. Se não tivéssemos nos informado bem, eu não teria conseguido.

O aumento das queixas de negativas do plano de saúde para realização do procedimento revelam esse problema. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), compilados a pedido do GLOBO, foram registradas 29 reclamações em 2023, contra apenas duas em 2021. Neste ano, até maio, já foram 19.

Ainda assim, para Cavalcanti, a obrigatoriedade da cobertura determinada pelo STJ é um bom sinal, que deve ampliar o acesso ao procedimento nos próximos anos:

— Cada vez mais vemos a população trans inserida no mercado de trabalho com acesso à saúde suplementar. E esse movimento foi muito marcante em alguns países, como nos Estados Unidos, onde houve um "boom" de cirurgias quando os planos começaram a cobrir. O que provavelmente vai acontecer no Brasil num futuro bem próximo.

E apesar do preconceito que ainda persiste, Kathyla também vê o futuro com bons olhos:

— É difícil para o ser humano enxergar além da própria percepção de si. Isso ajuda a fortalecer as pessoas que têm pré-conceitos, ou seja, um conceito equivocado sobre aquilo que elas não conseguem entender porque não vivenciam. Mas o mundo está mudando, e a sociedade vai melhorando. Daqui a umas três gerações, as coisas vão ser muito diferentes. As pessoas com preconceito é que vão estar isoladas.

No Rio, 650 pacientes aguardam hormonização

Em 2016, Denise Taynáh recebeu o laudo médico que indicava que ela estava apta a fazer sua tão esperada cirurgia. Naquela época, fazia sete anos do início do processo transexualizador. A secretária executiva, então, foi para a fila virtual de pacientes que aguardavam pela operação. E foram outros sete anos, e uma angustiante contagem regressiva, até a chegada da resposta de que finalmente realizaria o procedimento.

Denise Taynáh fez a cirurgia há um ano — Foto: Gabriel de Paiva
Denise Taynáh fez a cirurgia há um ano — Foto: Gabriel de Paiva

— Eu estava ansiosa e também com uma grande preocupação porque o Sistema Único de Saúde custeia a cirurgia e os tratamentos até os 75 anos. Eu não podia esperar muito tempo mais. Se passasse da data do meu aniversário, eu perderia o acesso — diz ela, que completou 75 anos ontem e fez a cirurgia há um ano no HUGG, da Unirio.

É possível que, no decorrer dos próximos anos, o longo tempo esperado por Denise não se repita para outras pessoas trans que compõem as filas dos sistemas de regulação do Estado do Rio de Janeiro à espera de cirurgias de redesignação. O HUGG foi habilitado em junho de 2023, e Cavalcanti conta que existe uma meta a ser cumprida quanto às cirurgias de redesignação:

— No ano passado, de junho a dezembro, fizemos nove cirurgias deste tipo. Em 2024, fizemos mais quatro. Agora temos cinco pacientes de julho a agosto. Estamos num fluxo bom. A ideia é operar de dois a três pacientes por mês. Hoje minha fila de pacientes prontas (com o laudo em mãos) é de dez pessoas — diz.

Maria Eduarda Aguiar, de 43 anos, está com a cirurgia marcada para julho, também no HUGG. Se procurasse o serviço particular, ela poderia ter que desembolsar de R$ 70 mil a R$ 100 mil, conta. Os altos valores são praticados sobretudo fora do país, para onde muitas pessoas trans viajam em busca da operação.

— Eu não teria como operar pelo particular porque as cirurgias custam muito caro. É um desejo de longa data. Não me sinto confortável com a genitália masculina. É fundamental o SUS ter esse serviço funcionando porque é uma questão de saúde pública para nós, travestis e transexuais. Precisamos ter acesso aos procedimentos que façam as adequações necessárias à nossa saúde — diz a carioca.

Para uma das etapas iniciais do processo transexualizador, no entanto, há uma longa fila de espera sem previsão para diminuir. Atualmente, 650 pessoas transaguardam em filas do Sistema de Regulação Estadual para acessar a hormonioterapia no Rio. Ao GLOBO, a Secretaria de Atenção à Saúde do Estado do Rio informa que, no ano ano passado, “o Complexo Estadual regulou 290 pacientes para o tratamento de hormonioterapia, sendo 153 para o Hospital Universitário Pedro Ernesto e 137 para o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede)”.

No Rio, a pasta de saúde prossegue na criação do Grupo de Trabalho para operacionalização dos fluxos. Uma das parlamentares que acompanham de perto esse trabalho é a parlamentar Dani Balbi (PC do B). E ela tem lugar de fala, a deputada estadual fez a cirurgia pela rede particular após doações financeiras de seus alunos, há oito anos. À época, explicou que o hospital público onde poderia fazer o procedimento, o Pedro Ernesto, estava sem recursos.

Ao GLOBO, a parlamentar acrescenta que, após ter recebido denúncias de pacientes alegando dificuldades de acesso ao serviço público, passou a agir junto à Defensoria e a outros órgãos:

— Não bastasse vivermos no país onde a população transexual e travesti mais é assassinada, com expectativa de vida de apenas 35 anos, ainda convivemos com todo tipo de descaso advindo do poder público, como a dificuldade de realização das cirurgias de readequação sexual e o acesso à medicação hormonal, fundamentais para assegurar o nosso bem-estar. Diante deste cenário, e após termos recebido várias denúncias, oficiamos, ainda em março do ano passado, a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Secretaria estadual de Saúde, sobre vários problemas, incluindo problemas na oferta de hormônios na rede pública.

No Hupe, da Uerj, outro local que realiza as operações no Rio, o governo estadual informou que, de maio de 2023 a maio de 2024, foram feitas dez cirurgias de readequação genital. A pasta também informa que 2% dos pacientes que passam pelo processo de hormonioterapia aderem à cirurgia.

— O que temos acompanhado de mulheres trans que entram no SUS é que, de fato, nem todas querem cirurgia de redesignação. Muitas querem apenas cirurgias complementares como mamoplastia de aumento, cirurgia de retirada do pomo de adão. Porém 2% é um percentual baixo quando a gente compara com outros serviços. É claro: é necessário um acompanhamento ambulatorial, entre outros cuidados, e impactam a vontade da pessoa e a disponibilidade técnica de oferecer o serviço. O que é importante vermos é se pacientes têm vontade e não têm o serviço disponível — avalia Bianca Lopes, pesquisadora que desenvolveu a dissertação e mestrado “Cuidados em saúde no processo transexualizador”, na Universidade Federal de Goiás (UFG).

Para acelerar o andamento do acesso tanto às cirurgias, como à hormonioterapia, no início deste mês, o Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC/RJ), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPE/RJ) emitiram uma recomendação conjunta pedindo a implantação do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (PAES-Pop Trans), o novo programa que ainda não foi publicado pelo Ministério da Saúde.

O documento, direcionado à Secretaria de Atenção à Saúde, dá 30 dias para que o órgão publique a portaria e tome as medidas necessárias para dar início ao programa.

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