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Participe da nova seção do GLOBO ‘Conte sua história de amor’! É só mandar seu relato, com no mínimo 4 mil caracteres e no máximo 5 mil, para o e-mail historiadeamor@oglobo.com.br. É preciso se identificar e mandar um telefone para contato. No entanto, caso prefira, a publicação pode ser anônima. As histórias selecionadas pela nossa equipe serão publicadas a cada 15 dias na versão digital (às quintas-feiras) e impressa (aos sábados) do jornal. Não é preciso ser escritor, apenas ter um conteúdo verdadeiro, vivido por você e com emoção genuína. Qualquer tipo de amor vale a pena!

Conte sua história de amor — Foto: Rata
Conte sua história de amor — Foto: Rata

"Os conjuntos habitacionais eram a esperança de muitas famílias para conquistar moradia digna, no final da década de 1960. Nossas famílias foram pioneiras em um grande conjunto de casas no bairro da Pavuna, no Rio. As ruas eram imensas ladeiras, nomeadas com nomes de passarinhos.

Minha casa era na Alameda dos Beija-Flores; a dela, na Alameda dos Tico-ticos. As duas ruas eram vizinhas, o que a obrigava a passar, todos os dias, a caminho da escola, em frente à minha casa. Ela era uma menina de 6 para 7 anos; eu, um menino de 9 para 10 anos. Ela usava um corte de cabelo, que, naquele tempo, chamavam de "Joãozinho" e que, hoje, chamam, modernamente, de "pixie". Não trocávamos palavra. Ela passava, com a mãe, sem dar atenção a ningu��m.

Tempos depois, nos víamos na igreja, nas missas dominicais. Ela, na companhia dos pais; eu, na maioria das vezes, sozinho. Ela chegava e saía de carro. Eu andava um bocado, até o ponto de ônibus. Ainda nesse período não nos falávamos. Ela já não era a menina de cabelos curtos, nem eu era o retrato acabado da timidez excessiva quando passamos a frequentar o mesmo clube, no que, antigamente, se conhecia como baile. O evento dominical era, sempre, dividido em dois momentos: músicas para dançar sozinho ou em grupos, com passos ensaiados durante a semana, e músicas para dançar acompanhado, as aguardadas "músicas lentas". A história, aqui, avança para o final da década de 1970.

Gosto de contar que, a custa de algum esforço, minha timidez, ainda que continuasse, foi dando lugar a uma insistência. Ela estava sempre no mesmo baile, acompanhada de muitas amigas; eu também era frequentador assíduo. Ela dançava lindamente, sozinha ou com o grupo de amigas, mostrando as coreografias ensaiadas anteriormente. Eu tentava dançar — e estou sendo muito generoso comigo mesmo, quando chamo de dança os desajeitados movimentos. O que eu mais aguardava era o momento da mudança de ritmo.

Desde que concluí o curso técnico passei a usar cabelo comprido. Talvez tenha ficado algum trauma do trote de raspar a cabeça, quando ingressei na Escola Técnica Federal. Meu cabelo comprido e cacheado era cuidado por mim com a vaidade aceitável para um jovem da minha geração. Na verdade, depois dos desajeitados movimentos dançantes, deviam me transformar no mais desleixado dos frequentadores do baile. Ainda assim, tomado por um misto de coragem e ousadia, eu sempre a convidava para dançar no momento em que o ritmo mudava. Lembro muito bem dos terríveis olhares dela, me avaliando e respondendo, sempre, do mesmo jeito à minha singela pergunta: quer dançar comigo? A resposta não poderia ser outra, não!

Quando conto nossa história, afirmo que sou um exemplo notável de persistência, pois ouvi sonoros 42 "nãos" até que...

Por algum motivo, não explicado, nem investigado, resolvi cortar o cabelo. Os cachos foram abandonados e fui ao baile dominical estreando um visual menos desleixado. Possivelmente, cansado em excesso, resolvi, também, que não iria exibir minha falta de talento para a dança. Quando o ritmo mudou, eu estava perto dela e do seu grupo de amigas. Antes que eu tentasse, pela 43ª vez, convidá-la para dançar, ela virou-se na minha direção e me perguntou as horas. Respondi e emendei o convite, tantas vezes repetido: quer dançar comigo?

Nosso namoro, dentre todas as histórias de namoro que conhecemos, é o único em que o casal pode determinar com exatidão o dia e a hora do começo. Depois da primeira e única música, naquela noite, me ofereci para acompanhá-la; éramos ainda vizinhos. O rigor daqueles tempos na criação dos filhos fazia com que ela, filha única, e os pais tivessem um trato que limitava o horário da presença dela no baile; 22h era o máximo permitido. Naquela noite, por 10 minutos ela não teria me perguntado nada.

Do tempo do cabelo grande e cacheado, ela lembrava de alguém, com aparência esquisita, convidando-a para dançar, insistentemente — foram 42 vezes; eu contei. Alguém que o penteado não permitia que ela enxergasse sequer os olhos por baixo dos cachos. A resposta negativa estava plenamente justificada.

Temos duas filhas. As meninas conhecem essa história e riem quando relembro detalhes. Esse ano, completaremos 45 anos de namoro e 37 de casados. Mudou muita coisa, é claro. Construímos uma parceria que nos enche de felicidade e orgulho. Tenho hábito de contar histórias no Facebook; quase todas sobre episódios vividos na sala de aula. Uma ou outra história sobre viagens; algumas sobre parentes e amigos. Ela já foi, inúmeras vezes, personagem principal. No entanto, o tempo fez com que ficasse tímida; quase tanto quanto eu. Não sabe nada sobre o que estou escrevendo, nem o motivo.

As mudanças em nós dois são visíveis. Desisti, de vez, de dançar desacompanhado. Aprendi, com ela e com as meninas, a dançar samba e forró, juntinhos. Não resistimos a dançar abraçados nas rodas de samba, que tanto amamos. Às vezes, somos elogiados pela performance. Temos uma neta, xodó dos avós, que é impiedosa comigo enquanto avaliadora de meus talentos coreográficos. "Vovô sabe cantar samba, conhece um monte de histórias de samba, sabe tocar alguns instrumentos de samba, mas não sabe sambar. Vovô é muito estranho."

Ela continua fazendo muitas coisas, ao mesmo tempo; explorando, com inegável talento, habilidades como a marcenaria e o artesanato. A rotina não faz parte do seu dia a dia. Uma de minhas filhas gosta de dizer que eu sou a pessoa que mais ama a rotina. O que deve ser uma licença poética para chamar o pai de preguiçoso. No entanto, a preguiça é um talento que não exerço tanto quanto gostaria. Cozinheiro apaixonado, dedico muito tempo ao preparo de receitas, que fazem algum sucesso. A impiedosa crítica gastronômica é a minha neta. Nesse aspecto, as observações ácidas não se justificam, segundo a maioria dos que experimentam as criações.

O estilo do corte de cabelo encerrará essa história. Desde aquela noite, e nos quase 45 anos depois, nunca mais deixei o cabelo crescer. Ela abandonou o corte "pixie" e também assumiu os cabelos brancos. Está muito mais bonita. Eu, rotineiramente, corto do mesmo jeito: máquina 2 nos cabelos e máquina 1 na barba. Minha neta é a responsável por agendar minha ida até a barbearia, próxima de casa. Com a sabedoria dos 4 anos de idade, ela informa ao competente barbeiro: "Você sabe cortar o cabelo do meu avô, mas não sabe pentear. Só eu sei." Ela ainda não sabe que é a personagem que encerra, por enquanto, essa história".

Por Antonio Luiz Miranda (Toninho Miranda)

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