Cinema
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Por — Rio de Janeiro

Entender Clarice Lispector, segundo declaração da própria, “não é uma questão de inteligência, e sim de sentir”. Ela falava sobre um professor de português do Colégio Pedro II que a procurou para contar que havia lido quatro vezes “A paixão segundo G.H.” e seguiu sem saber do que se tratava o livro. “No dia seguinte, uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Não dá para entender. Ou toca, ou não toca”, complementou a escritora em célebre entrevista concedida à TV Cultura, em 1977, poucos meses antes de morrer.

Tido como “infilmável”, o livro ganhou adaptação para os cinemas dirigida por Luiz Fernando Carvalho (que também assina o roteiro, com Melina Dalboni) e protagonizada por Maria Fernanda Cândido— com atuação muito elogiada pela crítica especializada. Ao GLOBO, a atriz conta da sua experiência nesse trabalho e revela como foi "contracenar" com a famosa barata do livro — esse bicho que, segundo ela, “causa muito nojo e ao mesmo tempo muito fascínio”.

— Tenho medo de baratas, não me dou bem com elas. Mas paro para pensar no porquê, se é um bicho que não vai me morder, não vai me fazer nada. Por que será que temos tanto pavor assim? — comenta a atriz. — Foi bem desconfortável ("contracenar" com o bicho). Procuramos entender e nos aproximar do que o livro propõe, que é esse animal sujo, “o imundo do mundo”, e ao mesmo tempo muito poderoso, que está aqui no planeta há muito mais tempo que os humanos.

No filme, assim como no livro, G.H., uma escultora de classe alta, resolve limpar ela própria o seu apartamento — em Copacabana, de frente para o mar. Afinal, Janair, sua então empregada doméstica, “despedira-se”. Lá, encontra a tal barata, gatilho para uma jornada de, digamos, “auto desconhecimento” — ou, nas palavras da própria Clarice, de uma “desorganização profunda” que faz a personagem “perder a montagem humana”.

— Não há o que temer. Essa desorganização nos espreita o tempo todo. Entramos em contato com ela por curtíssimos períodos, que eu chamaria de “espasmos de realidade”, e, nessas raras ocasiões, livres de todos os códigos e dogmas, experimentamos a atualidade da vida em si, sem máscaras e sem muletas — diz. — A “desorganização profunda” talvez seja o nosso estado verdadeiro, que nós nos esforçamos para mascarar, pois de outro modo não suportaríamos viver. Ela gera um certo medo, por isso nós sistematizamos o conhecimento e a própria vida. Usamos e nos apoiamos em todas as muletas que estão à nossa disposição.

O livro, segundo a atriz, fala justamente “da coragem de se libertar dessa muleta”.

Maria Fernanda Cândido em "A paixão segundo G.H." — Foto: Divulgação
Maria Fernanda Cândido em "A paixão segundo G.H." — Foto: Divulgação

‘Como ele vai filmar isso?’

O filme foi gravado em São Paulo, em 2018, mas o convite para viver G.H. foi feito para a atriz, por Luiz Fernando, dez anos antes, durante as gravações da minissérie “Capitu” (2008), onde trabalharam juntos. Na época, ela tinha 34 anos e estava grávida do seu segundo filho, Nicolas.

— Fiquei superlisonjeada e feliz, mas ao mesmo tempo me perguntei: “Como ele vai filmar isso? Como nós vamos fazer esse filme?” (risos). Mas, como até então isso não era um problema meu, aceitei — lembra a atriz.

Em 2017, o filme saiu do papel com uma preparação que durou um ano, em um galpão na Lapa, Zona Oeste de São Paulo.

— Eu chegava lá de manhã, umas 9h, e saía de noite. Foi um ano de trabalho intenso — conta Maria Fernanda, que já havia celebrado a obra de Clarice Lispector em “Correio Feminino” (2013), uma série do Fantástico, antes de comentar sobre as referências para compor a personagem. — Mais do que uma preparação formal, foi preciso trazer a minha vida, porque não é um filme para ser feito de forma confortável e programada. É preciso muito mais que isso.

Transgressão

Maria Fernanda faz uma espécie de “balanço” da história que está agora nas telonas em “A paixão segundo G.H.”, e destaca o seu fator transgressor.

— É um livro transgressor. Clarice realmente questiona a moralidade, os códigos sociais, a religião e o próprio sistema. O filme, portanto, também questiona absolutamente tudo. Não sobra nada. Mas o interessante, no final, é que G.H. não acaba com a vida, mas chega transformada ao outro lado. Depois de todos os questionamentos, ela se veste e sai para encontrar os amigos. Ela retoma essa vida cotidiana, porém já não é mais a mesma.

Maria Fernanda Cândido em cena de "A paixão segundo G.H." — Foto: Divulgação
Maria Fernanda Cândido em cena de "A paixão segundo G.H." — Foto: Divulgação
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