Rio

Tragédia em Petrópolis: a dor do homem que foi herói na chuva de 1981, perdeu parentes em 2013 e 2018, e hoje vive em área de risco

Jamil Muanis Antonio Luminato, há pouco mais de quatro décadas atrás, se tornou um símbolo do temporal de 1981 na cidade, ao ser fotografado carregando o corpo de um bebê que ele acabara de tirar da lama
Jamil Luminato em frente à casa em que mora, no bairro Independência: ele ainda tem dificuldades para lidar com as mortes da filha, de dois netos e do irmão em enxurradas que atingiram Petrópolis em 2013 e 2018 Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Jamil Luminato em frente à casa em que mora, no bairro Independência: ele ainda tem dificuldades para lidar com as mortes da filha, de dois netos e do irmão em enxurradas que atingiram Petrópolis em 2013 e 2018 Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

RIO — “A vida toda as pessoas têm me perguntado se me considero um herói. Mas fracassado? Pequeno frente a tantas tragédias que se repetem?” É com essa sensação de impotência que Jamil Muanis Antonio Luminato, hoje aos 60 anos, se vê diante de outra calamidade das chuvas em Petrópolis. Pouco mais de quatro décadas atrás, ele havia se tornado um símbolo do temporal de 1981 na cidade, ao ser fotografado carregando o corpo de um bebê que ele acabara de tirar da lama, como lembrou na última sexta-feira a coluna de Ruth de Aquino. Desde então, nas sucessivas calamidades que abalaram o município, ele próprio vivenciou a dor de perder familiares para as enxurradas. Em 2013, deu adeus a uma filha e a dois netos. Mais tarde, em 2018, chegou a vez de se despedir de um irmão.

— É cruel, uma pancada pesada. Quando vemos o que acontece com os outros, já dá aquela agonia. Com a sua família, o chão se abre. Tentei salvar minha filha presa no barranco. Mas parecia que eu revirava a terra com uma colherzinha de café — diz Jamil.

Hoje, auxiliar de serviços gerais num supermercado, ele vive numa das tantas áreas de risco de Petrópolis, numa das ruas mais altas do bairro Independência. Na vizinhança, há um lugar que ele chama de abismo, de onde, nos dias de céu claro, é possível avistar a Baixada Fluminense e a cidade do Rio. Já para a paisagem nos fundos de sua casa, Jamil não gosta nem de olhar. É a encosta que deslizou em março de 2013, soterrando sua filha Drucelaine Luminato, de 28 anos, e seus netos Rodrigo e João Victor, além de outras cinco pessoas ligadas à família:

— Minha filha vivia tão perto que, quase todo dia, eu a ouvia gritar da casa dela: ‘bênção, pai!’. Tempos depois, entendi que o que passei lá atrás (em 1981) era uma preparação para o agora, para o impacto que eu sofreria.

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A coluna de Ruth de Aquino reconta essa história. Ela era redatora do Jornal do Brasil quando a primeira página foi estampada pela foto de Carlos Mesquita, vencedora do Prêmio Esso, em que Jamil aparecia com a criança morta no colo. “Quando perdeu a esperança, pousou o bebê num barranco com cuidado, como se temesse machucá-lo. E voltou para resgatar sobreviventes no Morro do Alto Independência”, escreveu a jornalista. A coluna também revisitou o drama de 2013, quando Jamil enterrou Drucelaine.

Na época, o fotógrafo do GLOBO Gabriel de Paiva registrou o sepultamento. O mesmo Gabriel integrou a equipe do jornal que, na última sexta-feira, foi à procura de Jamil. Vizinhos indicaram onde ele vive. E, numa casa em frente à dele, seu filho caçula, Caique, de 15 anos, confirmou o endereço, antes de correr para chamar o pai. A região estava tomada de uma densa neblina, e horas depois mais uma chuva forte cairia sobre Petrópolis.

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Deu tempo, porém, de Jamil contar que, ao longo da vida, tentou virar bombeiro e piloto de avião. Mas acabou pedreiro durante muitos anos. Mesmo no ofício em que se especializou, no entanto, ele diz que se sentiu incapaz após a fatalidade de 2013. Relata ter ficado tão desnorteado que não conseguia mais entregar o serviço perfeito. Antes de surgir, oito anos atrás, a oportunidade no supermercado, ele passou por dificuldades desempregado, e precisou de ajuda até para pagar a conta de luz:

— Nossa vida é o quê? Os filhos. Se não tiver os filhos, a gente desiste.

Foi na ânsia de encontrar um deles, justamente o Caique, que o pai de 60 anos enfrentou as ruas cheias de lama e carros retorcidos na noite da última terça-feira. Pegou carona e terminou o percurso a pé até a escola em que o adolescente estuda e ficou abrigado durante o temporal, na Rua Coronel Veiga, uma das que haviam inundado naquele dia.

— Quando começou a chover, falei com ele por telefone e pedi para não sair do colégio. Ainda bem que ele obedeceu — lembra. — Já eu, enquanto atravessava a lama, revivi todas as memórias. E me senti mais desprotegido.

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Nessa trajetória, o colégio municipal de Caique guarda outra coincidência com o episódio que marcou Jamil 41 anos atrás. É chamada Prefeito Jamil Sabrá, que era quem comandava a cidade no início dos anos 1980. A reportagem do Jornal do Brasil da época, inclusive, destacava essa coincidência de nomes.

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Perda do irmão

O Jamil auxiliar de serviços gerais lamenta que, desde aquele período, vários clãs políticos tenham passado pela prefeitura, sem que tenham mudado a realidade de quem vive nas encostas. A cidade toda, na verdade, corre riscos, diz. Em 2018, seu irmão Heloítson Antonio da Silva estava na rua principal do Independência quando foi atingido por uma barreira. Morreram ele e a namorada, desta vez, sem destaque no noticiário. De lá para cá, Jamil fez questão de esquecer os detalhes de mais esse luto. Mas, embora se esquive das lembranças, conta que sua mãe, Maria Margareth, hoje com 80 anos, mudou-se de Petrópolis para Juiz de Fora, em Minas Gerais, traumatizada com as perdas nas catástrofes na serra fluminense.

— Ela ficou muito preocupada na terça-feira. Quando o sinal de celular voltou, me ligou e pediu para que eu não escondesse nada. Felizmente, desta vez papai do céu protegeu o Independência. Mas toda esta área é de risco — ressalta Jamil.

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A menos de 100 metros de sua casa — uma construção humilde, de dois quartos, sala, banheiro e uma cozinha por acabar de reformar — está instalada uma sirena que deveria alertar sobre perigos advindos da chuva. Na tempestade da semana passada, entretanto, moradores garantem que a sirene não soou. Quase nunca toca, mesmo nas chuvaradas torrenciais, porque, segundo Jamil, nos primeiros pingos costuma faltar energia elétrica no bairro, e o equipamento não estaria ligado a sistemas alternativos de abastecimento.

— E se tocar, para onde vamos? Não sei. Minha rua, por exemplo, não tem ralos, nada de drenagem. O pavimento, nós mesmos, moradores, que fizemos, em mutirão. Já a encosta em que morreu minha filha está ocupada de novo. Se eu ganhasse uma casa para sair da área de risco, eu iria. Mas constroem poucas moradias para os mais pobres. A vantagem é que Deus me fortalece — diz Jamil, que, embora não se considere herói, é um dos muitos petropolitanos que vencem batalhas cotidianas para sobreviver.