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Por — Rio de Janeiro

O delegado Mauricio Demétrio Afonso Alves, condenado a mais de nove anos de detenção pelos crimes de obstrução de justiça, organização criminosa, lavagem de capitais, além de laudo falso e inserção de dados falsos em sistema, foi denunciado pelo Ministério Público do Rio (MPRJ) em outro processo. Ele é acusado de ter preparado um falso flagrante contra duas advogadas e a sua cliente. Carolina Araújo Braga Miraglia de Andrade, uma das vítimas, relata ter sofrido assédio do delegado, humilhações e ter ficado três dias presa em condições insalubres.

Na época, as advogadas atuavam em nome Izaura Garcia, em uma ação de não cumprimento contratual em relação a um texto publicado no livro “Ágape”, do Padre Marcelo Rossi. Um inquérito foi instaurado para verificar o crime de plágio nas novas edições do livro. Durante as investigações, as advogadas pediram para ter acesso ao processo e foram chamadas para ir até à Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM) levando todas as documentações. No local, ele afirmou que a documentação era falsa e deu voz de prisão às três.

Além de mantê-las presas e incomunicáveis, o delegado mandou uma equipe à casa da cliente das advogadas, sem mandado de busca e apreensão. No ano passado, ele e o inspetor da DRCPIM foram denunciados por abuso de autoridade e fraude processual, na 33ª Vara Criminal. Segundo o Ministério Público, Demétrio teria chamado as duas defensoras e sua cliente a fim de forjar um flagrante contra elas. Carolina, que passou três dias presas, conta que o período marcou e mudou sua vida.

Confira o relato de Carolina na íntegra

Em fevereiro 2019, eu havia acabado de abrir meu próprio escritório. Estava em um momento de satisfação pessoal misturada com uma ansiedade pelo futuro. Eu e minha sócia estávamos conseguindo nossos primeiros clientes quando a minha prisão aconteceu. Tudo começou quando fui até a delegacia em que ele [Demétrio] era titular para ter acesso ao inquérito da Izaura. Ele me atendeu, me chamou para ir até a sala dele e prometeu que investigaria o caso a fundo. Tudo estava normal até que, do nada, ele colocou a mão sobre a minha e disse “você vai sair comigo”. Fiquei muito assustada e tentei desconversar. Ao fim da nossa conversa, ele pediu meu cartão do escritório, eu dei, e fui embora.

Na época, eu já me senti violada. A gente não espera esse tipo de comportamento de uma pessoa com a representatividade do Estado. Isso me deixou muito assustada, já que ele tinha um poder muito grande na mão. Após o episódio, ele me mandou mensagens com vários corações dizendo ter me adorado. Eu não respondia e ele continuou tentando fazer contato comigo, sempre ligando ou tentando falar com a minha sócia. Eu nunca correspondia. Era uma situação constrangedora.

Em maio, eu precisei de novas informações sobre o processo e tive que falar com ele novamente. Após o meu contato, ele me pediu para ir até a delegacia com os documentos da ação. Ele solicitou especificamente pelos papéis e pela presença de nós três — eu, minha sócia e a cliente. Enquanto estávamos sentadas na delegacia, ele questionou minha cliente sobre o registro da Biblioteca Nacional que ela havia apresentado, e ela confirmou. Foi nesse momento que ele disse que se tratava de um documento falso e deu a voz de prisão para nós três.

Eu não entendi nada, mas a partir disso, foi uma sucessão de abusos que eu não consigo dizer em que momento foi pior. Ele fechou a delegacia conosco dentro. Isso é uma coisa que eu nunca vi na minha vida. Tirou nossos celulares e deixou a gente trancada na sala. Eu pensava o tempo inteiro que era um engano, que não era possível aquilo estar acontecendo. Ele já tinha me assediado, mas eu não podia imaginar que ele faria algo assim. Tentava explicar que tínhamos um contrato dizendo que a cliente se responsabilizava pelos documentos que havia apresentado, e ele respondia sempre sendo muito violento. Eu senti muito medo, tive a plena sensação de que eu não sairia dali viva.

Depois de algum tempo, ele autorizou cada uma de nós fazer um telefonema. Sem poder usar nossos próprios celulares, eu liguei para o único número que decorei na vida: o da minha vó, Leda Lúcia, que tinha 82 anos na época. Ela estava muito nervosa, não entendeu nada. Foi muito dramático. Só deu tempo de pedir para ela chamar meu marido. Após a ligação, nós passamos o dia sendo torturadas na delegacia, com o Demétrio fazendo terror psicológico e humilhando a gente.

Ele entrava e saia da sala o tempo todo. Ele dizia “vocês não vão sair daqui mais”, “mexeram com gente grande” e coisas desse tipo. Por volta de 20h, nós fomos levadas para uma cela da carceragem da Polinter. A gente não foi transferida para Benfica, onde seria a audiência de custódia, porque eles afirmaram que o delegado “esqueceu a gente lá”. Depois fomos encaminhadas algemadas para o IML para realizar o corpo de delito. No dia seguinte, fomos enfim levadas para Benfica. Mas como só fomos levadas no fim da tarde, perdemos novamente a audiência e fui obrigada a passar mais uma noite presa. Foram três dias e duas noites, no total.

Quando eu saí, já era noite. Consigo me lembrar perfeitamente, meu marido foi me buscar e foi devastador quando nos encontramos. Ao mesmo tempo que eu sentia um alívio e queria chorar, eu precisava me manter inteira porque quando chegasse em casa, eu teria que contar tudo para os meus filhos, João e Maria, que tinham 14 e 16 anos na época. Assim que cheguei em casa, nem tomei banho e fui direto conversar com eles. Falei: “Filhos, eu fui presa, sofri um abuso e várias violações dos meus direitos. Mas que bom que estudei e me tornei advogada, porque eu vou reverter essa situação e provar que o que fizeram comigo foi errado”. Lembro dessa conversa perfeitamente até hoje. Meus filhos eram adolescentes, eu morria de medo do impacto que a minha prisão poderia ter na formação deles.

No dia seguinte, era domingo de Dias das Mães, o pior da minha vida inteira. A minha prisão foi tema de uma reportagem no Fantástico. Eu sequer sabia que tinha sido filmada. Ninguém me contou sobre a existência da matéria, eu só descobri com o anúncio na televisão. Minha vó estava do meu lado e nós assistimos juntos. Foi devastador. Isso gerou uma crise no meu trabalho e uma mancha na minha reputação, na minha imagem e no meu nome. As pessoas me ligavam o tempo tudo e eu não conseguia ter paz. Isso quase me destruiu, foi um tsunami que atingiu minha família inteira.

Eu tentava sempre ser forte e utilizar o que estava acontecendo para dar um bom exemplo para os meus filhos. Tentei mostrar que, independente das circunstâncias, a gente tem que ser forte e saber apanhar. Quando, dois anos depois, a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro trancou o inquérito policial e me inocentou, foi uma emoção que eu não sei descrever.

O que aconteceu comigo foi um caso abuso de autoridade de proporções gigantes, inclusive ao meu psicológico. Mas hoje consigo ter uma visão ainda mais clara da necessidade e importância da minha profissão. Transformei o trauma em combustível para exercer a advocacia, pois eu senti na pele a importância de ter alguém lutando pelos seus direitos. Agora, eu espero que ele seja condenado pelos crimes que cometeu e que eu possa encerrar esse capítulo da minha vida.

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