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Por — Rio de Janeiro

“O câncer é muito rápido, nosso tratamento, não”, constata, enquanto passa um filme em sua memória, Rosangela Soares, que desde 2018 luta pela vida no Instituto Nacional do Câncer (Inca). Aos 66 anos, ela tem um tumor na mama, com metástase nos ossos e no fígado. E, ao longo de sua jornada, sofre com adversidades que têm sido frequentes entre os pacientes oncológicos na rede pública do Rio. Em todas as etapas, do diagnóstico à alta complexidade, há gargalos que retardam os cuidados com uma doença que causou 112,1 mil mortes no estado nos últimos cinco anos. A aflição mais recente de Rosangela é a espera, desde 31 de agosto de 2022, para fazer tomografias cruciais no monitoramento de sua saúde. Embora diga que a doença não a apavora mais como no começo, ela confessa:

— Tenho medo dos resultados que virão.

Segundo dados da transparência do Sistema de Regulação (Sisreg), da prefeitura, e do Sistema de Informação do Câncer (Siscan), do Ministério da Saúde, acessados em 5 de setembro, só para o diagnóstico de um câncer de mama no Rio, é possível que uma mulher tenha que aguardar 188 dias, considerados os tempos médios na atenção primária para marcar uma consulta na ginecologia/mastologia (98 dias) e uma mamografia diagnóstica (30 dias), mais o período entre a realização e a liberação do exame, que ultrapassa 60 dias em 30,7% dos casos no estado. Se, antes, essa mulher tiver buscado uma consulta com um clínico, se acrescentaria, em média, 125 dias.

Já para uma consulta com um especialista em mastologia, com foco em oncologia, nos ambulatórios da rede de média complexidade, a primeira das 202 pessoas na fila estava aguardando há 75 dias, aponta o Sistema Estadual de Regulação (SER), também acessado terça-feira passada. No fim, admitidas essas hipóteses, teria se passado um ano e 23 dias para início do tratamento, sem falar em biópsias ou retornos ao médico.

Apesar de a OMS afirmar que a detecção precoce é uma estratégia central de controle da doença, e de a Política Nacional para a Prevenção e o Controle do Câncer ter como diretriz a garantia da confirmação diagnóstica oportuna dos casos, a demora é de meses para consultas e exames básicos até a descoberta de vários outros dos tumores mais comuns no Rio. Pelo Sisreg, na atenção primária, a média de espera por uma colonoscopia (importante em neoplasias de reto e intestino) chega a 158 dias; para consultas com um urologista (que pode apontar suspeitas de um câncer de próstata, por exemplo) alcança 95 dias; e para a realização de biópsias é de 31 dias.

Esse tempo pode ser definitivo para a cura, diz Maria Gefé, professora da Escola de Enfermagem da UFRJ e membro da Sociedade Brasileira de Enfermagem Oncológica:

— Alguns tipos de câncer são altamente tratáveis se diagnosticados no início, como o de mama e o de intestino.

Lei descumprida

Grupos como a Associação Brasileira de Apoio aos Pacientes com Câncer (Abrapac) afirmam que tampouco é cumprida a lei em vigor desde 2013 que determina que o paciente oncológico tem o direito de se submeter ao primeiro tratamento no SUS em até 60 dias após assinado o diagnóstico em laudo patológico.

— A fila é grande para entrar no sistema e iniciar o tratamento. Um motivo é que a oncologia no Rio depende muito dos hospitais federais e universitários, que estão sucateados. No Hospital Geral de Bonsucesso, recebemos denúncias da falta até de quimioterapia oral — diz Solange Gomes, vice-presidente da Abrapac.

Moradora de São Gonçalo, Rosangela comemora ter tido acesso ao Inca. Mas, há alguns dias, pensou em fazer um bolo de aniversário em protesto pelo atraso em suas tomografias:

— De todas as quimioterapias que fiz, a atual é a pior. Derruba cabelo, dentes e me deixa tão cansada que não aguento lavar dois pratos. Já desmaiei na rua, e pedi uma mudança no tratamento. Mas me disseram que, no meu caso, não podia sem a tomografia. A sensação é tomar remédios sem saber se está surtindo efeito.

No diagnóstico, ela já tinha enfrentado percalços. Ao perceber um caroço debaixo do braço, tentou por meses fazer uma mamografia pelo SUS. A cabeleireira precisou pedir ao filho de uma cliente, que é médico, a prescrição para realizar o exame numa clínica privada. Já no Inca, no início ela tinha só elogios, antes de começar a enfrentar engasgos em seu acompanhamento:

— Outro dia o médico me pediu um eletrocardiograma, e ele mesmo me aconselhou a fazer no particular, porque lá ia demorar.

O acúmulo de entraves em todo o percurso assistencial do câncer ocorre diante de uma tendência de envelhecimento da população e aumento no número de pacientes, com estimativa, só no Rio, de 72.380 novos casos de neoplasias malignas em 2023, segundo estudo do Inca. Mas dados do Datasus mostram que, enquanto no Brasil os diagnósticos de câncer cresceram em 2022 com relação a 2021, de 567 mil para 612,4 mil (8% a mais), o Rio foi um dos seis estados com queda nesse período, de 36,1 mil para 31,9 mil confirmações (8,7% a menos). E a situação fluminense, inversa às de estados como São Paulo e Minas Gerais, que seguiram a tendência nacional, pode não significar um recuo da doença.

— Essa queda pode ser multifatorial, desde a oferta ou não do serviço pela rede de saúde até a possibilidade de o usuário ter tido ou não o atendimento — analisa Maria Gefé, que coordena um projeto em favelas como a Rocinha e vê de perto as dificuldades da população.

Já a quantidade de casos por ano de tratamento caiu em 2022 em três dos seis hospitais federais do Rio. O Hospital Federal do Andaraí foi um deles: teve 426 casos em tratamento no ano passado, 23% a menos que os 553 de 2021. No Hospital Geral de Bonsucesso, por sua vez, houve mais tratamentos em 2022 do que no ano anterior — ainda assim, irrisórios 42 casos. Por outro lado, há sobrecarga no Inca, e o Hospital Mario Kroeff, que é filantrópico, tem grande aumento de pacientes: 2.176 casos em tratamento pelo SUS em 2022.

— A deterioração da rede federal nos últimos anos e a falta de profissionais fazem com que leitos estejam fechados (eram 336 nos seis hospitais federais e 56 nas unidades do Inca na última quarta-feira). Não há concursos, e a política de recursos humanos adotada, de contratos temporários, tem problemas como a alta rotatividade de profissionais — afirma o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), da Comissão de Saúde da Câmara do Rio.

Infográfico mostra o panorama da doença no estado do Rio — Foto: Editoria de Arte
Infográfico mostra o panorama da doença no estado do Rio — Foto: Editoria de Arte

Um mês no corredor

Vendo o sofrimento de quem morre sem socorro, a advogada Raquel Barreto resolveu focar seu trabalho voluntário em Niterói no projeto social Gileade, sobretudo para cobrar na Justiça o tratamento para pacientes. Ela viveu as dificuldades das pessoas que tenta auxiliar. Seu pai resistiu à enfermidade anos a fio, mesmo após só ter tido o diagnóstico com atraso. Mas, na pandemia, o acompanhamento semanal dele num hospital federal tornou-se semestral. Foi a brecha para que o “homem forte” parasse “em cima da cama, só pele e osso”, com um tumor no pulmão do “tamanho de uma laranja”, diz Raquel.

Hoje, ela recebe de cinco a seis pedidos de ajuda por dia, como o de parentes de uma jovem de 23 anos que, este ano, passou quase um mês internada no corredor de uma UPA em Cabo Frio, na Região dos Lagos. Por meio de liminar, Raquel conseguiu o encaminhamento da paciente para o Inca. No entanto, com o fígado muito debilitado pelo câncer, ela acabou morrendo.

— Infelizmente, a maioria das pessoas que atendemos vem a óbito, porque descobrem a doença em estágios avançados. A maior dificuldade é a central de regulação. Vi famílias desistirem — diz Raquel, que atua com outros voluntários, como o marido, o também advogado Allan Jefferson. — Mesmo quem é atendido pelo SUS, muitas vezes precisa fazer tomografias, ressonâncias e biópsias no particular, para agilizar. Muita gente poderia estar viva se não fosse assim.

No Inca, salas cirúrgicas fechadas e menos consultas

Em frente à unidade Santo Cristo do Instituto Nacional do Câncer, o Inca II, a angústia era aparente nas feições de Jaqueline Souza. Com dores desde maio, sua mãe, Solange Cristina, de 58 anos, recebeu diagnósticos de infecção urinária, pedra nos rins e gases. Numa crise, em julho, uma médica suspeitou do tumor, que a tomografia revelou ter 24 centímetros no ovário. A família recorreu à ouvidoria do Inca para agilizar o atendimento. E, naquele 22 de agosto, Solange tinha sua primeira consulta com o oncologista. No desespero vivido há dias, era um sopro de alívio, porque ela estava num instituto que é referência no Brasil. Mas sequer o Inca escapa da desestruturação dos últimos anos no combate ao câncer no Rio.

Relatórios de gestão do Ministério da Saúde mostram queda em indicadores de produtividade do instituto. O número de consultas em 2022 (261.198) foi o menor em cinco anos, 29% a menos que no pico registrado em 2019. Ano passado, em comparação com 2021, houve redução também em cirurgias, exames ambulatoriais e atendimentos de quimioterapia. Já os atendimentos de radioterapia foram 14.620, quando a meta era 30 mil. No relatório do ministério há justificativas, como a desativação de um equipamento por “obsolescência tecnológica e operacional” e uma parada programada de outro, para obras e instalação de um novo.

Pacientes e funcionários relatam que o Inca tampouco está imune à falta de profissionais na rede federal. Informações passadas à Comissão de Saúde da Câmara do Rio sustentam que, sem pessoal, das dez salas de cirurgia do Inca I, na Praça da Cruz Vermelha, só quatro funcionam. No Inca III, em Vila Isabel, Geralda Santos, de 77 anos, afirma ter muito a agradecer à equipe que a ajudou a superar um câncer de mama. Mas, no fim de agosto, lamentava uma situação inédita para ela:

— Há cinco meses tento, sem sucesso, marcar uma consulta de acompanhamento.

Obras de expansão

Diretor do Inca, o oncologista Roberto Gil reconhece haver obstáculos, mas frisa perspectivas como a retomada das obras de expansão do instituto, possivelmente viabilizada numa parceria público-privada (PPP), como parte do Novo PAC federal. Além de impactos na pesquisa e no ensino, aumentaria em 40% a capacidade da radioterapia e em 22% a de leitos de internação do instituto, entre outros avanços.

— Isso vai nos exigir um planejamento de contratação de pessoal. Não vejo sentido de um projeto físico sem alocação de recursos humanos apropriada — afirma o médico.

O déficit de profissionais, admite, é realidade, e chega a 370 servidores, segundo ele. Mas Gil se diz confiante na aprovação de um concurso público, provavelmente no ano que vem, para contratação de funcionários efetivos. E lembra estarem confirmados certames para admitir temporários este ano e em 2024. Questões como o fechamento de salas cirúrgicas, diz, seriam sanadas.

Ele lembra que, no Inca, a pandemia motivou grande número de profissionais em idade de se aposentar a efetivarem a ida para a Previdência. Esse é um dos fatores apontados pelo oncologista para a redução de atendimentos. Outra causa residiria no represamento dos diagnósticos, sobretudo em 2020, devido à Covid-19, fazendo com que pacientes iniciem os cuidados médicos em estágios mais avançados da doença.

— Gera, então, maior tempo de permanência, cirurgias mais complexas e maior ocupação no CTI — pondera.

Infográfico — Foto: Editoria de Arte
Infográfico — Foto: Editoria de Arte

Orçamento congelado

Mais uma questão que ele ressalta é o congelamento do orçamento do Inca, desde 2017, em cerca de R$ 417 milhões:

— É o maior de uma instituição federal no Rio, e o executamos quase 100%. Mas, além de constante renovação do parque tecnológico, precisamos formar profissionais.

Gil destaca ainda esforços do Ministério da Saúde para integração com estado e municípios a fim de capacitar toda a rede assistencial. Ele defende, por exemplo, a qualificação da regulação dos pacientes, para casos mais graves terem prioridade na fila.

— O Rio tem quase 50% só de atendimento da lei dos 60 dias (para início do tratamento). Podemos chegar perto dos 100%, como outros estados conseguiram — afirma ele, que completa: — É necessário aumentar a capacidade de diagnósticos precoces e de realização de biópsias. Se não, continuaremos com tratamentos em fase avançada, mais dispendiosos e menos eficazes.

Governo do Rio quer estadualizar Hospital da Lagoa para criar instituto

A diminuição da capacidade de atendimento oncológico na rede federal do Rio torna essencial a criação de um Instituto Estadual de Oncologia na capital fluminense, especializado no diagnóstico e no tratamento da doença, segundo o secretário estadual de Saúde, Doutor Luizinho. Com esse objetivo, desde janeiro o governo fluminense busca a estadualização do Hospital Federal da Lagoa, pedido reforçado em junho pelo governador Cláudio Castro junto ao presidente Lula.

— A ideia é que tenha participação do Hospital Universitário Pedro Ernesto e da Uerj — explica o secretário. — Com o envelhecimento da população e mais métodos de diagnóstico, a demanda oncológica só vai crescer. É um investimento grande, mas não tem jeito, temos que fazer — reforça Luizinho, sem descartar a construção de um hospital se as negociações com a União não avançarem.

Para tentar reverter as dificuldades atuais, o secretário cita ainda a fase final de obras — que nos últimos anos pararam diversas vezes — no Hospital de Oncologia de Nova Friburgo, hoje com 70% das intervenções concluídas, segundo o estado. Quando a unidade estiver pronta, a previsão é de 58 leitos e realização anual de mais de 600 cirurgias e cerca de cinco mil procedimentos de quimioterapia, consultas e exames.

Luizinho também lembra que, em julho, foi anunciada a construção do Instituto Estadual do Câncer da Baixada Fluminense, com 66 leitos, em Nova Iguaçu. A licitação, diz o governo, está sendo preparada para que as obras iniciem este ano. Tem ainda o projeto de um polo oncológico na Zona Oeste do Rio, com local em estudo. E, mês passado, a secretaria fez acordo com o hospital filantrópico Mário Kroeff, na Zona Norte do Rio, para fazer mais 8.280 atendimentos em um ano.

Já o secretário de Saúde do município do Rio, Daniel Soranz, afirma que, sem vagas nas unidades que atendem oncologia, muitos pacientes ficam no aguardo por uma remoção em unidades não especializadas em câncer. No fim de agosto, eram quase 150 pessoas nesse drama, diz ele.

Oncologia é com o estado

Soranz também ressalta que, no país, a responsabilidade pela oncologia é estadual. Mas o Rio acabou dependente das redes federal e universitária.

— Em todas as demais unidades da federação, é o estado que faz oncologia — afirma.

Com rumos a serem corrigidos, o luto recai sobre famílias como a de Vera Lúcia Soares, de 63 anos, morta há três meses com um câncer no intestino. Após o diagnóstico, em Cabo Frio, foram quase quatro meses de espera pelo tratamento, conta Olinda das Graças, cunhada de Vera:

— Nessa demora, a morfina não fazia mais efeito, os remédios à base de corticoides também não. Ela era internada, medicada e voltava para casa. Quando conseguiu ser operada, morreu 15 dias depois. Sempre se busca desculpas para a morte. Mas acredito que, se ela tivesse um tratamento antes, teria mais chances de sobreviver.

Infográfico — Foto: Editoria de Arte
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