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Política

Violência de gênero atinge 81% das parlamentares no Congresso

Das 73 deputadas e senadoras que responderam a enquete do GLOBO, 59 afirmaram que sofreram ataques no exercício do mandato
Votação. A senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) foi relatora de proposta que cria punição para quem ataca direito das mulheres na política, aprovada em 13 de julho Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado
Votação. A senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) foi relatora de proposta que cria punição para quem ataca direito das mulheres na política, aprovada em 13 de julho Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

SÃO PAULO — Faz sete meses que Vivi Reis (PSOL-PA) deixou a suplência para se tornar deputada federal. Uma das primeiras frases que ouviu, logo ao ser anunciada, foi que deveria ter o mesmo “fim” que Marielle Franco, vereadora assassinada a tiros em 2018. Dentro da Câmara, onde frequentemente responde que não é assessora de outro deputado, a parlamentar lembra que já foi chamada de “menina” em reunião de líderes, teve falas interrompidas e viu um colega insinuar que ela não era “mulher completa” porque não tinha filhos.

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O cenário descrito pela deputada tem nome: violência política de gênero. Segundo levantamento do GLOBO, oito a cada dez parlamentares já sofreram ataques desse tipo. Na semana passada, o Senado aprovou um projeto de lei para combater a prática. Ainda falta sanção presidencial.

Nos últimos dias, O GLOBO enviou um questionário com 24 perguntas sobre o tema para todas as 78 deputadas e 12 senadoras do país. A pesquisa foi respondida por 73. Delas, 59 (80,8%) relataram já ter passado por algum episódio de violência durante o mandato.

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Assédio no Congresso

As respostas enviadas ao GLOBO mostram que a maior parte das entrevistadas relata violência dentro do próprio Congresso (54,8%). A deputada federal Shéridan (PSDB-RR) lembra que foi assediada por um parlamentar após ficar mais de meia hora explicando uma matéria importante de sua relatoria.

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— Ele disse que não conseguiu prestar atenção em nada do que falei porque estava olhando para a minha boca — disse a deputada.

Apesar de querer denunciar, Shéridan disse que corria o risco de ser taxada de “louca”, adjetivo que 34,3% das parlamentares já ouviram, segundo a enquete. Dias antes, ela já havia sido chamada de “gostosa” por um deputado no plenário.

— Aquilo fez com que o trabalho que eu estava construindo em torno de uma temática relevante perdesse espaço. É agressivo, insalubre e acontece o tempo todo.

Ao todo, 12 parlamentares relataram casos de violência sexual durante o mandato. Uma delas contou que um deputado colocou a mão em sua coxa durante uma reunião. Ao ser confrontado, respondeu que nem percebeu.

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Na internet, ambiente em que 63% das deputadas e senadoras relataram ataques, a violência inclui ameaças de morte e estupro contra as parlamentares e suas famílias. “Essa miserável podia ter caído nas mãos do Lázaro”, diz uma das mensagens recebidas por Jandira Feghali (PCdoB-RJ), fazendo referência ao homem acusado de matar uma família em Ceilândia, no Distrito Federal. “Tinha que pegar uma mulher dessa e fuzilar em praça pública”, diz outra.

Desde os anos 1990 no Congresso Nacional, Jandira lembra que teve negado o direito à licença maternidade e, no lugar, foi oferecida uma licença de saúde. Como ela disse, gravidez “não é uma doença”.

— Foi a primeira violência que sofri. Era a negação de um direito fundamental dentro da Casa. É como se dissessem: seu lugar não é aqui — afirmou Jandira.

Passados quase 30 anos, mulheres relataram situações como ser excluída de debates (30,1%). Deputadas citaram o fato de não serem escolhidas para relatorias de matérias ligadas a economia, trabalho ou reformas importantes do governo federal. Elas reclamam de serem relegadas a temas como assistência social, educação e gênero.

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Também são consideradas situações de violência de gênero questionamentos sobre aparência física e forma de se vestir (relatado por 34,3% das entrevistadas) e comentários sobre o corpo e a vida pessoal (45,2%). “Frágil, pequena e magrinha, não dará conta do mandato”, ouviu uma, que não se identificou. Outra chegou a ser chamada por um colega de “mal-amada”.

Casos de racismo

No questionário, as parlamentares relataram a ocorrência de violência de gênero que também envolvem racismo ou LGBTfobia. A deputada Tia Eron (Republicanos-BA) foi outra que disse ao GLOBO que é rotina ser barrada por funcionários da Casa e ouvir que o elevador é “apenas para deputados”. Num almoço com parlamentares e representantes do Mercosul, lembra, ela se deparou com um comentário racista. Um senador pediu para que se traduzisse a palavra “macaco”.

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— Ele estava me olhando e pensou alto. Insistiu por duas vezes: “Traduza a palavra macaco”. Talvez sem perceber que se tratava de uma atitude racista, traduziram para ele: Mono . Pela boca de outra mulher, ele me chamou de macaca — contou Tia Eron.

O resultado deste cenário de ataques constantes pode levar ao desestímulo à participação feminina na política: 90,4% acham que essas agressões afastam as mulheres. Na tentativa de melhorar esse cenário, o Senado aprovou no dia 13 um projeto de lei de autoria da deputada Rosângela Gomes (Republicanos-RJ) que cria regras para coibir agressões contra mulheres na política. Segundo ela, a proposta nasceu de experiências próprias.

— O intuito é fazer valer o direito delas, que tem que ser igual ao de um deputado — disse Rosângela.

Lei e observatório

O texto prevê punição para quem cometer “ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos” das mulheres nas eleições ou no mandato.

— Não podemos admitir que mulheres sejam diminuídas, que sofram preconceito ou qualquer outro tipo de discriminação, seja lá em qual ambiente estejam — afirmou a senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), relatora da proposta.

Em outra iniciativa para tentar dar segurança às mulheres no mandato, foi lançado no mês passado na Câmara o Observatório Nacional da Mulher na Política, que vai monitorar e centralizar estudos sobre o tema.

— A violência política é muito forte, eu mesma passei por diversas situações. É como se tudo para a mulher fosse um arranjo, um jeitinho. O observatório começou grande, com mais de 40 instituições nacionais e internacionais participando. Temos que encarar esse problema, que é real. Não pense que ninguém vai nos dar poder, teremos que conquistar — afirmou a deputada Tereza Nelma (PSDB-AL), uma das criadoras do Observatório e procuradora da mulher na Câmara.

Sem casos de punição desde 2001

Desde a criação do Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados, em 2001, nenhum caso de violência política de gênero levado ao colegiado resultou em punição aos acusados.

Os dados foram levantados pela pesquisadora Tássia Rabelo, doutora em ciência política e professora da Universidade Federal da Paraíba.

No período, houve nove casos: sete foram arquivados e dois ainda seguem sem decisão, mas com parecer pelo arquivamento.

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Um dos casos envolve o presidente Jair Bolsonaro, que afirmou em plenário que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada. Com o fim da legislatura, o mérito não foi julgado e a denúncia foi arquivada.

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) também teve dois de seus casos arquivados. Um envolvia uma agressão física em plenário e outro tratava da declaração de um deputado de que mulher que bate como homem deve “apanhar como homem”.

— No contexto marcado pela exclusão, a violência política de gênero pode cumprir o papel de tornar o trabalho político ainda mais difícil ou frustrante, contribuindo para que as poucas (mulheres) que conquistaram esse espaço sejam levadas a se afastar ou tenham suas chances de sucesso reduzidas — diz Tássia.

Segundo a pesquisadora, a falta de punição pode servir ainda como desincentivo à participação política de outras mulheres.