Pablo Ortellado
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Pablo Ortellado

Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP

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Pablo Ortellado

Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP

Uma antiga máxima política diz que guerras e catástrofes unificam o país. No passado, políticos enfrentando dificuldades chegaram a se lançar em guerras com o único propósito de unir o país sob sua liderança. Mas a máxima não tem funcionado adequadamente em tempos de polarização. Na pandemia, o Brasil não se uniu, mas se dividiu, de maneira ainda mais aflitiva que em tempos de normalidade. Agora, com a tragédia no Rio Grande do Sul, perdemos outra vez a oportunidade de nos unir e dar as mãos em solidariedade.

Quando meio milhão de gaúchos atingidos pelas enchentes tiveram de abandonar suas casas, uma enxurrada de publicações e mensagens no meio digital passou a promover a ideia de que o governo e entidades governamentais não apenas não se empenhavam em ajudar a população, como criavam obstáculos, exigindo licenças de quem queria ajudar com lanchas, barcos e jet-skis ou notas fiscais de caminhões e carros que traziam doações. Nem o Exército brasileiro foi poupado das críticas.

Esse discurso é especialmente difundido por bolsonaristas, mas não apenas por eles. Num levantamento de 2 mil publicações no X (antigo Twitter) na manhã de ontem com as palavras “Rio Grande do Sul” e/ou “tragédia”, quase um terço (31%) incorporava o discurso antigoverno, uma proporção gigantesca. A situação não parece muito diferente noutras mídias sociais, grupos de WhatsApp ou Telegram.

Lidar com isso de maneira equilibrada num momento de emergência humanitária e forte polarização política é um desafio enorme. Por um lado, esse discurso pode ter efeitos nefastos. Pode desestimular doações, uma vez que doadores potenciais passam a ficar receosos de que produtos sem nota fiscal sejam barrados na estrada. Pode também minar a confiança da população no trabalho de bombeiros, policiais militares e do Exército, peças-chave no atendimento aos necessitados. Por outro lado, bolsonaristas alegam que suas denúncias sobre ações fiscalizatórias abusivas forçaram instituições governamentais como Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Polícia Rodoviária Federal e a Receita Federal a instituir normas claras liberando a passagem de doações.

No centro da controvérsia está uma reportagem do SBT da última segunda-feira, que flagrou um caminhão com donativos ao ser parado na fiscalização pela acusação de não ter nota fiscal dos produtos e carregar excesso de carga. A reportagem foi usada como evidência, produzida pela imprensa profissional, de que agentes do governo criavam obstáculos irrazoáveis ao transporte de doações.

A semana passou com intensa troca de ataques sobre o episódio. De um lado, destacou-se que a empresa dona do caminhão publicou uma nota esclarecendo que, embora ele tenha sido parado (por excesso de carga, e não por falta de nota fiscal), o veículo não foi retido e entregou todas as doações. Além disso, todas as entidades que fiscalizam as rodovias emitiram notas inequívocas reiterando que donativos não seriam barrados. De outro lado, bolsonaristas e críticos ressaltaram que a ANTT reconheceu haver pelo menos seis caminhões multados por excesso de carga e pelo menos um barrado (depois liberado) por falta de nota fiscal das doações.

É claro que, se houve excesso de zelo de fiscais nas rodovias no começo da semana, esses episódios foram pontuais e rapidamente corrigidos pelas autoridades. Seguir insistindo nesse ponto agora parece apenas uma disputa política irresponsável, que não ajuda a melhorar a situação dos atingidos pelas cheias.

Em resposta à controvérsia, a Secretaria de Comunicação do governo federal oficiou o Ministério da Justiça para apurar ilícitos relacionados à disseminação de desinformação que pudesse “diminuir a confiança da população nas capacidades de resposta do Estado, prejudicando os esforços de evacuação e resgate em momentos críticos”. O ofício relaciona algumas publicações de grande alcance e sugere que elas fazem parte de um esforço orquestrado para minar a confiança no Estado brasileiro.

O pedido é uma resposta de mão pesada, que pode atentar contra liberdades fundamentais. Uma das publicações citadas diz o seguinte: “Impressionante como 90% dos vídeos que chegam do Rio Grande do Sul mostram apenas civis ajudando no resgate de vítimas. Essa tragédia evidenciou a ineficácia e a falta de vontade do Estado em proteger o cidadão. Vergonha para os políticos, honra para os heróis civis que estão salvando vidas”.

Não me parece fazer qualquer sentido o Estado brasileiro investigar um cidadão ou cidadã que expressou a opinião de que o governo tem sido ineficaz. Esse tipo de opinião faz parte da democracia, e o governo precisa aprender a conviver com ela. Não é porque os bolsonaristas foram irresponsáveis que o governo pode se exceder na resposta.

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