Miguel de Almeida
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Miguel de Almeida

Editor e diretor de cinema

Informações da coluna

Miguel de Almeida

Editor e diretor de cinema

Com um pouco de exagero, o conservadorismo brasileiro pode ser equiparado ao fundamentalismo iraniano. Há um tradicional entusiasmo pátrio com as belezas naturais e a simpatia tropical da população. Mas isso soa apenas cosmético. No espelho, sem maquiagem e com as olheiras matinais, estamos muito mal na foto.

Em outra mão, o conservadorismo se reflete nos índices de violência. Os comunicados da ONU, dada nossa diminuta relevância mundial, pouco se referem às chacinas habituais ocorridas nas cidades brasileiras ou no campo e só citam por vezes o trágico extermínio dos povos originários. Reflexo do descaso planetário provocado pela reconhecimento de que o Brasil é de fato um lugar estranho. Haja vista que a extrema direita agora deseja tirar a praia dos pobres. Vai-se o fio dental, e ganha-se um pastor.

Foram míseros os momentos da História em que o brasileiro esteve tão ameaçado pela religião. Nem por isso ocorreu aumento da tolerância com a tragédia dos pobres. A sociedade cindida parece desejar jogar da caçamba os desvalidos e colocá-los na cadeia. Ou matá-los. Na frase definitiva de Christopher Lasch, vivemos uma democracia das elites. Para consolidar o poder, lançam mão do Estado contra a população. Cada vez mais as leis oprimem os desguarnecidos.

O financiamento da religião hoje ocorre não de olho no amparo emocional ou no afeto humanitário, mas tão somente a reboque da catequização de todas as almas. Isso não pode acabar bem. A ideia de sociedade presume a convivência de diversas opiniões e diferenças, em que a maioria deve civilizadamente respeitar as minorias. Em caso contrário, as crenças de alguns caminham para o aprisionamento da nossa gente — e todos serão obrigados a usar véus. Mesmo os incréus, como estão afamados os que não comungam (ops!) sob o dízimo dos cultos.

Capa do audio - Pablo Ortellado - CBN Ponto de Vista

Numa régua simples, o Brasil aos poucos se transforma no Irã da América Latina. Em 1925, o físico Albert Einstein, em sua visita à região, já notava que o Uruguai tinha modernidade nos costumes e trato bem maior se comparado ao Brasil. Enquanto na terra de Noel e Guimarães Rosa se criminalizam muitas das liberdades individuais, países vizinhos, sem serem ateus ou agnósticos, muito pelo contrário, superaram a imaginária lei divina escrita pelos suspeitos de sempre. Naquelas terras, são os homens de carne e osso que legislam. Tanto as sociedades locais, seja por meio de plebiscitos ou de seus políticos, quanto o Judiciário reconheceram os direitos individuais, a despeito de crenças religiosas ou fundamentalistas.

Argentina, Uruguai e Colômbia estão à frente em vários princípios morais. Em 2022, a Colômbia descriminalizou o aborto até 24 semanas. Dois anos antes, a Argentina fez o mesmo para gestação até 14 semanas. E o Uruguai? Aprovou a interrupção em 2012. A Cuba de Fidel, em 1968. O Chile aguarda somente sua regularização. No mundo, 77 países, com diferentes nuances, já atualizaram favoravelmente suas legislações.

No Brasil dos pastores, a Câmara aprovou na semana passada a urgência de proposta de lei que piora ainda mais a legislação contra o aborto. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, o aborto, se realizado após a 22ª semana, estará equiparado ao homicídio. O prazo vale também para as vítimas de estupro. Ainda segundo a redação, a vítima de violência sexual terá uma condenação superior à do estuprador. Sóstenes é pastor, bolsonarista raiz e foi crítico acerbo do isolamento social. Acabou internado numa UTI com Covid-19. Chegou à Câmara pelo voto de 65.443 exultantes almas.

Também o combate às drogas escande o fundamentalismo brasileiro se comparado à América Latina. O Uruguai — de novo o Uruguai, caro Einstein! — tornou-se o primeiro país no mundo a legalizar a produção e consumo da Cannabis. Em 2015, foi a vez de o Chile aprovar seu uso terapêutico. A descriminalização ocorreu nos anos seguintes na Colômbia, no Peru e na Argentina. Na contramão, discute-se no Congresso, relatado pelo bolsonarista Ricardo Salles, a condenação pelo porte de qualquer quantidade de entorpecentes.

Assim como o aborto, a criminalização da Cannabis penaliza a população pobre — o que sempre é lembrado pelo presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso. O Brasil desponta como terceira maior população carcerária do mundo, e um terço das penas se dá pela lei de drogas. Como ressalta o ministro, em geral são jovens negros. Vale lembrar, as maiores vítimas de homícidio nos índices de violência no Brasil.

Não é de espantar que três países fronteiriços — Uruguai, Colômbia e Argentina — tenham transformado o Brasil numa relíquia do reacionarismo. É uma democracia para as elites.

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