Como se não bastassem as derrotas recentes sofridas pelo governo no Congresso, o presidente Lula resolveu criar ruído até mesmo com a base de esquerda. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele afirmou que a oferta de mulheres e negros não atende à demanda de espaços no governo. Na sequência, à R��dio Sociedade, disse que não há diversidade em cargos de primeiro escalão porque os partidos de sua coalizão representam “forças políticas que não combinam com o programa ideológico”. O problema não está somente nos partidos aliados. Pelo contrário: ele se origina no próprio governo, que segue incapaz de dialogar tanto para fora, com o Centrão, quanto para dentro, com a esquerda.
Parte do problema da articulação do governo é a concentração de cargos-chave nas mãos do PT diante de um Legislativo que pende à direita e é ocupado majoritariamente por parlamentares com resistência ao partido. Basta ver quem ocupa as posições mais importantes para a relação Executivo-Legislativo. Ambos são petistas: Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais (que não fala com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira) e Rui Costa, ministro da Casa Civil.
A resistência ao partido está ancorada em três fatores. Primeiro, Lula foi eleito por uma frente ampla. Segundo, a maioria do Congresso se alinha à direita. Terceiro, a calcificação política a que a sociedade está submetida (e, por consequência, os parlamentares) envolve a clivagem PT/anti-PT.
Diante desse cenário já complexo, a decisão de criar atrito com a base de esquerda beira o incompreensível. Seria melhor se Lula tivesse dito que as mulheres e os negros não foram chamados para compor o governo porque não construíram espaços de poder político e econômico ao longo das últimas décadas. Afinal, esses grupos foram impedidos de ter acesso aos mecanismos de ascensão social desde a formação do Estado brasileiro. Dizer que não há quadros qualificados para ocupar espaços estratégicos em pleno 2024 é retórica de um governo que tomou a decisão de não compartilhar espaços com os grupos minorizados do país.
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Justamente esses grupos serão convocados nas eleições presidenciais de 2026, quando o país se verá novamente diante do dilema de como impedir a eleição de um candidato de extrema direita com histórico antidemocrático. Quando o momento chegar, Lula e o PT não hesitarão em pedir o voto das mulheres e dos negros em prol da democracia. O cenário que se desenha em democracias mundo afora, como França e Alemanha, não é animador. Ainda há tempo de evitá-lo, mas, para isso, governo e PT precisam se abrir duplamente. Não se sabe se farão isso.
*Beatriz Rey é doutora em ciência política, pós-doutoranda na USP e pesquisadora da Fundação POPVOX (EUA), Tadeu Kaçula é doutorando e mestre em mudança social e participação política pela USP e diretor da Universidade Afrobrasileira