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Apesar de o carnaval movimentar R$ 9 bilhões, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, há uma economia invisível. É aquela impulsionada pelos catadores, que costumam receber valores irrisórios vasculhando em busca de latas, plásticos e papéis. Sociedade, poder público e setor produtivo perpetuam essa vulnerabilidade social. Mas novos ventos chegam com a economia circular e a logística reversa, que lidam com o princípio da responsabilidade compartilhada do ciclo de “vida do produto” — reaproveitando as matérias-primas, economizando recursos e gerando renda.

Durante o carnaval, tem gente que não trabalha como catador no dia a dia, mas acompanha os blocos para conseguir dinheiro para uma refeição. O tamanho do desafio é imenso: 32 milhões de pessoas passam fome no Brasil, o equivalente a 412 mil ônibus lotados, e aproximadamente 1 milhão de catadores.

O pior é que a primeira etapa da reciclagem ganha alguns contornos de trabalho análogo à escravidão, com jornada exaustiva, condições degradantes e pagamentos injustos ou ausentes. A razão para essa comparação é bem simples: quando contratados pelas empresas, os catadores costumam receber apenas pelo material que recolhem, quase nunca pelo serviço prestado. Além disso, o trabalho se mostra pesado, extenuante, muitas vezes arriscado (sem o uso de equipamento de proteção individual).

Felizmente, há iniciativas mais inclusivas e colaborativas. Como diretor executivo da Reutiliza Já, startup especializada em desenvolver soluções ESG, fui o responsável, sob a coordenação da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Acat), pela rastreabilidade da coleta seletiva nos carnavais de Recife e São Paulo em 2023. Nas duas capitais, nos unimos à Ancat, fizemos o cadastro dos catadores — autônomos e cooperados — e negociamos com a indústria valores de compra dos recicláveis. Desenvolvemos ainda uma tecnologia — uma plataforma de rastreabilidade com indicadores ESG e armazenamento em blockchain — para identificar o gerador do resíduo, monitorar a fase de triagem, transporte de material e destinação final.

Nosso trabalho rendeu indicadores socioambientais aplicáveis no desenvolvimento de políticas públicas. A transferência de renda para os 827 catadores do projeto nas duas cidades chegou a R$ 173.880. A cada 10kg de material coletado, pagou-se pelo serviço e pelo material, gerando uma renda média de R$ 100 por dia. Os catadores cooperados receberam diárias pelo trabalho nas centrais e escritórios.

Respeitamos, dessa forma, a legislação que prevê o Pagamento pelo Serviço Ambiental Prestado (PSA), em convergência com a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Até os catadores que estavam fora do projeto se beneficiaram com o aumento dos preços que praticamos, porque o valor da matéria-prima em média subiu no mercado. Isso pode se repetir no Réveillon, São-João e festivais de música — e cotidianamente por setores como varejo, serviços e indústria. É uma questão de estratégia e tecnologia.

Com uma relação de trabalho mais justa, vem a dignidade. Digo por experiência própria. Já vi uma família construir uma casa em cinco anos com o dinheiro ganho coletando resíduos; um homem resolver todas as suas dívidas durante o carnaval e uma pessoa conquistar a confiança perdida e retirar novamente os documentos. São apenas algumas histórias inspiradoras, que podem se multiplicar. Mas, antes, a sociedade deve se conscientizar de que, para reciclar os resíduos, também precisa transformar a vida de 32 milhões de pessoas que passam fome no país.

*André Paternostro é diretor executivo da startup Reutiliza Já

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