Mundo Guerra na Ucrânia

'O que vimos lá foi simplesmente terrível': ONU confirma retirada de civis da usina siderúrgica de Azovstal, em Mariupol

Zelensky anuncia saída do primeiro grupo de cem pessoas; Papa Francisco pediu abertura de corredores humanitários para retirar civis da cidade, no Sudeste da Ucrânia
Civis que deixaram a área perto da usina siderúrgica de Azovstal, em Mariupol, embarcam em um ônibus acompanhado por um funcionário da ONU Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS
Civis que deixaram a área perto da usina siderúrgica de Azovstal, em Mariupol, embarcam em um ônibus acompanhado por um funcionário da ONU Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS

MOSCOU e BEZIMENNE (Ucrânia) — Após mais de um mês de cerco e bombardeios pesados, o primeiro grupo de civis foi retirado da área do complexo siderúrgico de Azovstal, onde estão entrincheirados os últimos combatentes ucranianos que ainda resistem ao cerco de dois meses do Exército russo à cidade de Mariupol, no litoral do Mar de Azov, no Sudeste da Ucrânia. A ONU, que vinha tentando mediar a saída, confirmou a retirada, e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse que o primeiro grupo de mais de cem civis foi retirado. Para Natalia Usmanova, que deixou a usina nesse primeiro grupo, a experiência nos bunkers da usina foi terrível:

— Você simplesmente não pode imaginar o que passamos: o terror — disse Usmanova. — Eu morei lá, trabalhei lá toda a minha vida, mas o que vimos lá foi simplesmente terrível.

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Encolhida no labirinto de bunkers da era soviética muito abaixo da vasta siderúrgica Azovstal, Usmanova sentiu que seu coração iria parar de tão aterrorizada quando as bombas russas choveram sobre Mariupol, salpicando-a com pó de concreto.

Usmanova, de 37 anos, falou à Reuters no domingo depois de ser evacuada da usina, um amplo complexo fundado sob Josef Stalin e projetado com uma rede subterrânea de bunkers e túneis para resistir a ataques.

— Eu temia que o bunker não aguentasse; eu tinha um medo terrível — disse Usmanova, descrevendo o tempo de abrigo no subsolo. — Quando o bunker começou a tremer, eu fiquei histérica.

No vilarejo de Bezimenne, em uma área de Donetsk sob o controle de separatistas apoiados pela Rússia, cerca de 30 quilômetros a leste de Mariupol, Usmanova se lembrou da falta de oxigênio nos abrigos e o medo que tomou conta da vida das pessoas acocoradas lá embaixo.

— Nós não vimos o sol por muito tempo — disse ela.

Usmanova afirmou ter brincado com o marido na saída do ônibus, em um comboio organizado pela ONU e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que agora eles não precisam mais ir ao banheiro com uma lanterna.

Novas retiradas

“Grato à nossa equipe! Agora eles, juntamente com as Nações Unidas, estão trabalhando na evacuação de outros civis da fábrica”, tuitou Zelenskiy neste domingo.

No sábado, militares ucranianos em Azovstal já haviam informado que 20 civis haviam sido retirados e esperavam seguir para Zaporíjia, em território controlado pelas forças de Kiev.  Eles devem chegar ao local na segunda-feira.

Mais cedo, o Ministério de Defesa russo também confirmara o início da operação de retirada de civis.

“Em 30 de abril, após a instauração do cessar-fogo e da abertura de um corredor humanitário, dois grupos de civis saíram dos edifícios anexos ao terreno da fábrica metalúrgica de Azovstal”, afirmou o ministério no Telegram, na manhã deste domingo. “Durante a tarde saíram 25 moradores. E depois um segundo grupo de 21 pessoas, que foram levadas para Bezimennoye”.

A localidade fica entre a cidade portuária estratégica e a fronteira com a Rússia.

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Um vídeo divulgado pelo ministério russo mostra um comboio de veículos e ônibus circulando durante a noite, todos com a letra Z, que virou símbolo das forças russas no conflito. Segundo Moscou, todos os civis retirados até agora receberam alojamento, alimentos e assistência médica necessária.  Cerca de 100 mil pessoas permanecem na cidade, cuja população antes da guerra era de 500 mil.

Além dos fuzileiros navais, entre os defensores de Mariupol estão soldados do Batalhão Azov, grupo de origem paramilitar e ideologia neonazista incorporado à Guarda Nacional ucraniana. A captura ou eliminação completa seria uma vitória simbólica para o Kremlin em alardeada meta de “desnazificar” a Ucrânia.

Sitiada há várias semanas, com centenas de edifícios destruídos, todas as suas lojas saqueadas e a população sem água, luz e gás, Mariupol é uma das cidades mais devastadas pelo conflito na Ucrânia . Caso seja tomada por Moscou, um corredor de acesso terrestre poderá ser formado entre a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, onde atuam separatistas pró-Moscou, e a Península da Crimeia, anexada por Moscou em 2014.

A retirada de civis é uma demanda antiga, não apenas de políticos locais, mas de líderes como Emmanuel Macron, da França, e Olaf Scholz, da Alemanha, que pressionaram o presidente russo, Vladimir Putin, para permitir a abertura de corredores humanitários seguros. Nas últimas semanas, foram feitos vários esforços para organizar um cessar-fogo e permitir que os moradores deixassem a cidade portuária, mas todos fracassaram.

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O Papa Francisco reiterou, neste domingo, o pedido de abertura de corredores humanitários para evacuar civis da cidade e e denunciou que Mariupol foi "bombardeada e destruída de maneira bárbara", em uma crítica indireta à Rússia.

— Meus pensamentos estão com a cidade ucraniana de Mariupol, a cidade de Maria, bombardeada e destruída de forma bárbara. Reitero meu pedido para que sejam abertos corredores humanitários seguros — pediu novamente o Papa durante a oração do Angelus na Praça de São Pedro, Vaticano.

Mais cedo, o Ministério da Defesa da Rússia disse ter atacado armas fornecidas à Ucrânia pelos EUA e países europeus, destruindo uma pista em um aeródromo militar perto da cidade ucraniana de Odessa. As forças russas teriam usado um Onyx de alta precisão para atacar o aeródromo, depois que a Ucrânia acusou Moscou de derrubar uma pista recém-construída no principal aeroporto de Odessa. O governador regional de Odessa, Maksym Marchenko, por sua vez, afirmou que a Rússia usou um míssil Bastion, lançado da Crimeia.

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Nas áreas controladas pela Rússia, Moscou busca estabelecer o domínio e neste domingo introduziu o rublo como moeda na região de Kherson, embora também permita o pagamento com a moeda ucraniana pelo período de quatro meses. Depois disso acontecerá uma mudança completa para o rublo.

— A partir de 1º de maio, vamos integrar a zona do rublo — disse Kirill Stremousov, que governa Kherson, segundo a agência estatal russa RIA Novosti.

A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, se reuniu com o presidente da Ucrânia  durante uma visita surpresa a Kiev , divulgada neste domingo. A visita acontece uma semana depois da viagem à capital do secretário de Estado americano, Antony Blinken , e do secretário de Defesa, Lloyd Austin.

"Obrigado aos Estados Unidos por ajudar a proteger a soberania e a integridade territorial de nosso Estado", tuitou Zelensky em uma mensagem que inclui um vídeo. Nele, o presidente aparece ao lado de guardas armados, no momento em que recebeu Pelosi e uma delegação do Congresso na entrada da sede da presidência em Kiev.

Em comunicado, a delegação americana anunciou que também viajará ao sudeste da Polônia e a Varsóvia e afirmou que a visita  pretende "enviar uma mensagem inequívoca e veemente ao mundo de que os Estados Unidos estão com a Ucrânia".

Na última quinta, o presidente dos EUA, Joe Biden, pediu ao Congresso mais US$ 33 bilhões (R$ 165 bilhões) para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão militar da Rússia.