A Suprema Corte dos EUA limitou a aplicação de uma lei relacionada à obstrução de um processo oficial, usada para processar e condenar mais de 200 pessoas envolvidas na invasão do Capitólio por uma turba trumpista, em 6 de janeiro de 2021. Na prática, a jurisprudência deverá levar a novos processos, novos julgamentos e poderá impactar até o ex-presidente Donald Trump, que incitou a invasão.
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Pela decisão, adotada por 6 juízes e contestada por três, para que uma pessoa seja condenada por obstrução de um processo oficial, a promotoria deve comprovar que ela danificou documentos ou itens usados nesse procedimento, efetivamente impedindo que ele fosse concluído ou iniciado.
O caso julgado, que levou à jurisprudência, era relacionado a um policial que estava com os trumpistas no momento da invasão do Capitólio e que foi preso e indiciado por sete crimes, incluindo a obstrução: sua defesa alega que ele foi empurrado pela multidão e que ficou no prédio do Congresso por menos de quatro minutos.
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Apesar de a maior parte dos tribunais aceitar a interpretação anterior da lei, de 2002, um juiz de primeira instância rejeitou os argumentos dos promotores, e disse que eles haviam ido "longe demais" no caso de obstrução. Depois de passar por uma corte de apelações, que aceitou os argumentos da acusação, o caso foi levado à Suprema Corte — enquanto não havia uma decisão, a Justiça adiou o anúncio das sentenças para alguns dos condenados, e outros chegaram a ser libertados de forma antecipada.
De acordo com o Departamento de Justiça, das mais de 1,4 mil pessoas processadas e condenadas no âmbito da investigação sobre o 6 de Janeiro, 249 delas foram indiciadas pelo crime de obstruir um processo oficial. Naquele dia, o Congresso estava reunido em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado para certificar a vitória do democrata Joe Biden no Colégio Eleitoral, uma etapa protocolar no processo eleitoral que foi interrompida pela invasão da multidão trumpista. Ao todo, cinco pessoas morreram.
Em 52 casos, a obstrução de processo oficial foi a única acusação apresentada pela Justiça Federal, e 27 pessoas estão presas. Como a ordem da Suprema Corte foi remetida aos tribunais de instâncias inferiores, eles poderão revisar casos já julgados ou que estão perto de irem a julgamento.
A decisão foi criticada pelo secretário de Justiça, Merrick Garland.
"O dia 6 de Janeiro foi um ataque sem precedentes à pedra angular do nosso sistema de governo: a transferência pacífica de poder de uma administração para outra. Estou decepcionado com a decisão de hoje (sexta-feira) que limita uma importante lei federal que o Departamento tem procurado utilizar para garantir que os principais responsáveis por esse ataque enfrentem as consequências apropriadas", escreveu Garland, em comunicado. "Para os casos afetados pela decisão de hoje, o Departamento tomará as medidas adequadas para cumprir a decisão do tribunal."
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De acordo com o New York Times, citando fontes próximas ao Departamento de Justiça, a sensação no órgão é de que "poderia ser pior", e os promotores estão trabalhando para reforçar outras acusações contra os invasores, incluindo vandalismo e invasão de propriedade. O jornal afirma, ainda, que juízes federais devem concordar com pedidos da acusação para aumentar as penas por outros crimes, para "compensar" as novas restrições. Na decisão desta sexta-feira, o presidente da Corte, John Roberts, criticou a pena máxima de 20 anos pelo crime.
"Nada no texto ou na história legal sugere que [a lei] foi concebida para impor uma pena de prisão de até 20 anos a essencialmente todos os arguidos que cometam obstrução de Justiça de qualquer forma, e que possam estar sujeitos a penas menores ao abrigo de estatutos de obstrução mais específicos", escreveu Roberts.
Mais do que o aspecto jurídico, a decisão da Suprema Corte deve ter um impacto político. O ex-presidente Donald Trump, ele próprio acusado pelo Departamento de Justiça de tentar obstruir um processo oficial, diz que os processos contra seus apoiadores (e contra ele mesmo) têm motivação política, além de prometer perdoá-los se voltar à Casa Branca. Mesmo que não atinja a maioria dos mais de 1,4 mil processados (dos quais mil já foram condenados ou se declararam culpados), a jurisprudência deve lhe dar argumentos para seus ataques contra o que chama de "parcialidade" dos tribunais.
"Grande notícia", escreveu Trump em sua rede social, a Truth Social, chamando a decisão de "grande vitória" para os "prisioneiros políticos" do 6 de Janeiro.
Até o momento, juristas ainda não sabem se a decisão vai impactar os problemas de Trump com a Justiça. Na ação judicial que investiga sua tentativa de interferir no processo eleitoral de 2020, ele é acusado de de conspiração para fraudar os Estados Unidos, para obstruir um processo oficial do governo e para privar pessoas de direitos civis previstos em lei federal ou na Constituição. Ele também foi acusado de tentar obstruir um processo oficial: a certificação dos resultados eleitorais pelo Congresso, no dia 6 de janeiro de 2021.
— Ao contrário do réu no caso perante o tribunal [nesta sexta-feira], as acusações contra Trump referem-se especificamente à tentativa de alterar as provas, os votos eleitorais, que o Congresso considerava na sessão conjunta de 6 de janeiro. Portanto, embora alguns réus provavelmente obtenham uma nova sentença (ou mesmo novos julgamentos), o caso de Trump pode seguir em frente — disse à CNN Steve Vladeck, professor da Escola de Direito da Universidade do Texas;
Até segunda-feira, a Suprema Corte deve emitir uma outra decisão importante para o republicano: se ele tem imunidade em processos relacionados a atos ocorridos enquanto ainda estava na Casa Branca. Segundo seus advogados, apenas o Congresso poderia julgá-lo, não os tribunais, nem mesmo após deixar o cargo. Em abril, em um debate sobre o caso, os magistrados pareciam dispostos a rejeitar a tese do republicano, mas sinalizaram que deveria haver algum tipo de garantia aos ex-presidentes. A decisão, apontam analistas, deve ser apertada, seja ela qual for. Atualmente, a Suprema Corte está dividida em uma supermaioria conservadora de seis juízes — três deles nomeados por Trump — contra três progressistas.