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Por — Montevidéu

Gustavo Zerbino é um dos 16 sobreviventes da queda de um avião da Força Aérea Uruguaia com 45 pessoas no alto da Cordilheira dos Andes, em 1972. Os jovens de um time de rúgbi e alguns parentes ficaram isolados numa geleira por 72 dias e tiveram que comer carne humana até serem resgatados, num dos episódios de maior dramaticidade e superação do século XX.

O relato de um sobrevivente do Milagre dos Andes - Parte 1

O relato de um sobrevivente do Milagre dos Andes - Parte 1

O relato de um sobrevivente do Milagre dos Andes - Parte 2

O relato de um sobrevivente do Milagre dos Andes - Parte 2

O filme “A Sociedade da Neve” (Netflix) tem impactado muito as pessoas pelo realismo das cenas do acidente e do período desesperador em que ficaram isolados. Na pele de quem viveu tudo aquilo, o que achou?

É muito realista, até pela preparação, que ajudamos a fazer. Durante dez anos, eles nos ligavam, até de madrugada, para perguntar detalhes. Estiveram um mês nos Andes, tomando imagens do sol nascendo, se pondo, avalanches, para usar na filmagem das cenas, feita nos Pirineus, na Espanha. Acho que ficou uma força simbólica grande. No outro filme (”Vivos”, de 1993), as pessoas que morriam não tinham nome, não se dava o nome delas. Isso nos incomodou.

Um dos momentos mais angustiantes da tragédia é quando sintonizam o rádio e ouvem que as buscas estão encerradas. Como fizeram para não enlouquecer?

Era o décimo dia desde o acidente. Na manhã seguinte, me levantei, sem consultar ninguém, comecei a olhar para onde havia caído o avião. Estava tudo escuro, com as primeiras luzes do dia, no alto da montanha, na neve, mas aqui ainda era noite. Saiu o Numa Turcatti e me perguntou: “Que está fazendo?.” Disse que precisava ver se era verdade que, do outro lado daquela montanha, estava Curicó (cidade chilena). Decidimos partir em expedição. Era como subir as Torres Gêmeas. Vestíamos um mocassim de couro, meia de nylon, uma calça, uma camisa, um blazer. Saímos para essa aventura que era impossível, mas não tínhamos nada a perder. Se ficasse, morreria, e se subisse poderia morrer também, mas poderia me salvar. Em uma noite, perdemos 12 quilos. Na manhã seguinte, quando chegamos ao topo da primeira montanha, vimos que havia como uns 150km de montanha para todos os lados. Eram como as ondas do mar. Tivemos de voltar. Fizemos um pacto de não dizer nada aos outros, para não baixar o moral. Quando descemos a montanha, havia assentos virados. E havia dois corpos, de dois amigos. Aí, quando os vi, pensei: nunca ninguém vai achar esses corpos. E percebi que tinha de levar às mães e às famílias algo para que pudessem fazer o luto.

Sua trajetória também ficou marcada por essa decisão de recolher objetos de todos que morreram. O quanto a simbologia é importante para aceitarmos tragédias e a morte?

Se não tivesse feito isso, durante 40 anos, a cada dia que passasse, cada vez que tocasse o telefone, uma mãe pensaria “é meu filho ligando”. Você tem que dar certeza, terminar. Agora é uma racionalização que estou desenvolvendo, mas na hora foi instintivo. E aí fui juntando objetos de todos os que haviam morrido. Arranquei a corrente, o relógio. E quando voltei lá para baixo, já havia toda aquela quantidade de mortos, então pensei: “Não posso levar de um e não levar de outros”. E comecei a escavar e buscar os corpos para tirar algo. Depois (na volta a Montevidéu), foram 30 dias, indo casa por casa, contando às famílias como haviam morrido, como haviam vivido.

Muito se fala daquilo a que vocês tiveram de se submeter para suportar fisicamente, inclusive apelando à carne humana para se alimentar. O que foi mais importante no aspecto psicológico?

Tínhamos uma norma: proibido reclamar. Quem reclamava, cortávamos água ou comida. Não era um castigo, no minuto em que se recompunha, voltava tudo normal. Não adiantava reclamar: todos tínhamos frio e medo. Combinamos que, para romper o silêncio, tinha que agregar valor: contar uma piada, uma história, uma ideia... Ou por exemplo dizer que a sua avó fazia os melhores ravioles a la Caruso (receita tradicional no Uruguai), e que quando sairmos você vai convidar todo mundo para provar. Não era masoquismo, era uma forma de mirar o futuro. Reclamar é inútil. As coisas que acontecem na vida... não são boas nem más. São fatos. Se eu aceito a realidade, me aparecem possibilidades do que posso fazer. Se brigo com a realidade, sofro.

Faz sentido pensar assim. Mas como não reclamar logo na situação mais adversa que se possa imaginar?

Qual foi a primeira palavra que você ouviu ao nascer, na sua casa? Foi “não”. Te educaram pelo medo e pela culpa. “Se comporte bem para ganhar qualquer coisa”, “se não tomar a sopa inteira vem a Cuca...”. E a manipulação se dá pelo medo e pela culpa. Uma pessoa por dia tem entre 20 mil e 50 mil pensamentos automáticos, inconscientes, por dia, e 90% são negativos. Não vou conseguir, vou atrasar, não vou poder. Na Cordilheira, nos demos conta na primeira noite, que foi a mais longa do mundo, que por mais que gritássemos, chorássemos, seguiríamos tendo frio, medo e fome. Perdíamos água, sal, e se queixar seria ampliar o problema. Tínhamos de fazer algo diferente. E algo diferente era ir contra tudo o que dizia a mente, era preciso controlá-la. Ainda assim, na prática, é difícil que controlemos a mente. Parece natural às pessoas, quando acontece uma evento muito ruim, e ainda mais em grandes tragédias, o pensamento de “por que comigo?”

Como não pensar isso?

É muito difícil falar contigo porque eu estou dizendo que, para atuar, eu apagava a mente. E você, para entender, quer me levar ao processo de pensamento. Isso não existia. Não perguntávamos “por quê?”. Nós nos perguntávamos “como?”. Como fazer para subir aquela montanha, para sair dali. O “como” te impulsiona. Não tínhamos tempo para entrar em interpretações filosóficas. Tínhamos de atuar, fazer. Fazer coisas para seguir vivo, massagear os pés, qualquer coisa. Se você para meia hora, congela. Não havia tempo e nem havia o que perguntar. Meus amigos estavam sangrando. Eu tinha três meses de faculdade de Medicina, aulas teóricas básicas, e tive que ser o médico. Quem tinha um manual de sobrevivência a 5 mil metros de altura? Não há essa informação, e a mente, quando não sabe, se rende. E te diz: “É impossível, não se pode.”

A mente se rende antes do corpo...

O único que se rende é a mente. O corpo, nunca. O coração bate automaticamente, ainda que você não queira. O diafragma faz assim para respirar, involuntariamente. Quem desiste é a mente.

Isso foi uma vivência pessoal sua ou vocês conversavam sobre esse processo mental?

Coletivo. Acho que tudo isso seria impossível, ou pelo menos seria impossível do jeito que aconteceu, se não fosse um grupo uruguaio, e um time de rúgbi. São muitos ingredientes: vivíamos no mesmo bairro, no mesmo colégio, éramos amigos, jogávamos o mesmo esporte. Isso foi importante, porque não se pode construir uma cultura numa crise, do nada. Essa não é uma história de uma tragédia, é uma história de construção de solidariedade. O rúgbi é um esporte maravilhoso. Os ingleses, que o inventaram, diziam: o futebol é um esporte de cavalheiros jogado por animais, e o rúgbi é um esporte de animais jogado por cavalheiros.

O senhor já voltou lá no local do acidente diversas vezes. Como se sente?

É importante. E, veja, já mudou completamente. Nós caímos numa geleira que se chamava Vale das Lágrimas. Incrível, antes da gente já tinha esse nome. Está a 4,5 mil metros de altura. Essa geleira tinha três mil anos de gelo. Em 50 anos, não tem nada mais. Derreteu tudo, não tem mais gelo. Toda essa água onde está? Aqui (embaixo). Veja o que aconteceu no Rio Grande do Sul. O clima no mundo mudou. Isso que está acontecendo é duríssimo, mas é a nova realidade, vai acontecer de novo.

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