No dia 4 de outubro de 2023, o site Axios relatou que uma delegação dos EUA viajou secretamente para Riad para avançar nas conversas sobre um “mega acordo” com a Arábia Saudita, que incluiria a normalização das relações com Israel. A ideia vinha ganhando força desde 2020, e os três lados — especialmente sauditas e israelenses — pareciam dispostos a dar o passo final, e já contavam com os benefícios políticos, econômicos e de segurança.
Três dias depois da matéria do Axios, o grupo terrorista Hamas lançou um grande ataque a Israel, deixando 1,2 mortos, mais de 200 reféns e dando início a uma guerra na Faixa de Gaza que já matou quase 35 mil pessoas. O acordo entre sauditas e israelenses, que parecia iminente, foi congelado — e as conversas de bastidores começam a sinalizar mudanças bruscas de rumo.
Ao contrário dos Acordos de Abraão (2020), que levaram à normalização dos laços de Israel com Emirados Árabes Unidos e Bahrein, Riad sempre exigiu que um eventual acerto incluísse ao menos promessas sobre um futuro Estado palestino. Com o início da guerra, as demandas sauditas se intensificaram, e chegaram a um ponto de não retorno.
— Para nós, o ponto final aqui definitivamente inclui nada menos do que um Estado independente para a Palestina — disse à BBC, em janeiro, o embaixador saudita em Londres, Khalid bin Bandar. — Estávamos perto da normalização, portanto próximos de um Estado palestino. Um não existe sem o outro.
‘Prêmio’ ao Hamas
Israel, mesmo sinalizando apoio à normalização, não mostrou disposição para ceder. Benjamin Netanyahu disse que, enquanto for primeiro-ministro, não haverá um Estado palestino, e alguns de seus aliados afirmam que isso seria equivalente a “premiar” o Hamas pelo 7 de outubro.
— Israel não tem nenhum interesse em permitir a criação de um Estado palestino neste momento, ainda mais considerando a coalizão política no poder, e a resistência histórica de Netanyahu [ao Estado palestino] — afirmou ao GLOBO Paulo Velasco, professor de Política Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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No mundo perfeito para sauditas, israelenses e americanos, um acordo de normalização seria o famoso “win-win”, ou “todos ganham”: Washington lideraria uma aliança de segurança ampla, incluindo duas das maiores forças militares do Oriente Médio, em uma aparente mensagem a “forças hostis” (especialmente o Irã). Ao aproximar os dois lados, seria estabelecida uma parceria de longo prazo, inclusive na reconstrução de Gaza, tarefa que os israelenses querem relegar aos árabes.
— A ideia é formar uma espécie de “condomínio” para a gestão de Gaza. O ônus para Israel administrar o território é enorme, e a população ficará cada vez mais dividida. E a semente do ódio contra Israel está lá, e está muito bem plantada — aponta Velasco.
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Economicamente, Arábia Saudita e Israel são considerados complementares, com o reino servindo como fonte de energia e investimentos, e os israelenses fornecendo conhecimento em setores como o de alta tecnologia, crucial para os planos de modernização de Mohammad bin Salman, conhecidos como Visão 2030.
— A Arábia Saudita tem tentado desenvolver esse plano de se descolar da dependência do petróleo, e Israel teria muito a oferecer para os sauditas: para Netanyahu seria a abertura de um mercado gigantesco — afirmou ao GLOBO Fernando Brancoli, professor de Segurança Internacional e Geopolítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apontando ainda para o aspecto religioso da aliança. — Estamos falando dos territórios mais sagrados para o Islã, e de um Estado judaico se aliando ao que seria o espaço de Meca e Medina, com uma dimensão bastante potente.
Mesmo antes do 7 de outubro, firmar um acordo do tipo prometia ser uma tarefa hercúlea. Além da questão palestina, sobre a qual não parece haver consenso a médio ou longo prazo — especialmente com um Netanyahu cada vez mais pressionado politicamente, e com um Joe Biden pouco disposto a fazer concessões —, há outros fatores impossíveis de se desprezar.
A começar pelo Irã, que se viu menosprezado pela Casa Branca com o desinteresse de Biden na retomada do acordo sobre o programa nuclear, firmado por Barack Obama em 2015 e rasgado por Trump três anos depois. Ao contrário dos tempos em que havia diálogo com Teerã, a saraivada de sanções foi um presente à linha dura, que se consolidou no poder. Uma aliança entre sauditas e israelenses, com o aval dos americanos, poderia ser encarada como um argumento para os iranianos investirem em seus arsenais, e até abandonarem uma antiga fatwa (decreto religioso) do aiatolá Ali Khamenei, que veta o uso de armas nucleares.
‘Grande Estratégia’
Um pouco além, a normalização teria efeitos para a China. Pequim é o maior parceiro comercial dos países do Oriente Médio e do Norte da África, e exportou à região em 2022, segundo o Fundo Monetário Internacional, US$ 171 bilhões em bens e serviços, ou R$ 881,74 bilhões.
— Do ponto de vista prático e do ponto de vista econômico, a China é um ator muito importante no Oriente Médio. Se isso fosse dito há uns seis anos, seria um pouco duvidoso — disse Brancoli. — Mas a dinâmica ainda se manifesta de maneira tímida do ponto de vista político. Não tivemos, por exemplo, uma grande declaração chinesa sobre seu papel no diálogo para um cessar-fogo, ou sobre o papel da China na reconstrução de Gaza.
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Um dos pontos por trás da pressão americana pela normalização é a retirada dos sauditas da crescente órbita chinesa, como parte da “grande estratégia” de Biden de contenção da China no cenário global. Pequim não se pronunciou sobre um eventual acordo entre Riad e Israel, mas uma eventual guinada saudita rumo aos EUA ameaçaria investimentos bilionários no reino, em setores estratégicos e nos planos do Visão 2030.
Os obstáculos são muitos, e o tempo é curto, especialmente para Biden. Às vésperas de uma eleição na qual a política externa pode lhe roubar alguns votos, o democrata quer deixar um acordo como seu legado para o Oriente Médio.
Por isso, uma espécie de “Plano B” tem ganhado força. Um acordo mais enxuto, e apenas entre EUA e Arábia Saudita. Como apontou o jornal britânico Guardian, o acerto incluiria um pacto de defesa, seguindo as bases do assinado com o Bahrein, no ano passado, e definiria ações conjuntas em campos como a Inteligência Artificial e o desenvolvimento da indústria nuclear civil. O plano não citaria a questão palestina, e a normalização com Israel seria deixada para depois, provavelmente quando Netanyahu estiver longe do poder.
— O governo israelense hoje dá mais valor a impedir a formação de um Estado palestino do que à normalização com os sauditas. Então agora o acordo está sendo discutido de forma bilateral — disse ao Guardian Kirsten Fontenrose, ex-diretora para a região do Golfo Pérsico no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.