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O ativismo da franco-malinesa Assa Traoré começou no dia em que seu irmão Adama foi morto asfixiado, em 2016, sob custódia policial em Beaumont-sur-Oise, nos subúrbios de Paris. Sem respostas do Estado, e sem respaldo da justiça, que segundo ela protegia os policiais envolvidos no caso, Assa criou o movimento "Verdade por Adama". Mas, apesar dos vários protestos à época, sua luta só ganhou repercussão internacional anos depois, quando o americano George Floyd foi morto nas mesmas circunstâncias, dando início a uma nova onda de protestos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) por todo mundo. Naquele ano, Assa foi eleita uma das "Guardiães do Ano" pela Revista Time — título dado para pessoas que fizeram contribuições significativas à sociedade — e se tornou uma das principais líderes do movimento na Europa.

Seu ativismo continua, mas diferentemente dos EUA, onde o policial branco que matou Floyd foi condenado a 20 anos de prisão, os agentes franceses envolvidos no caso foram absolvidos em julho deste ano e estão soltos, mais de sete anos após o crime. Em entrevista ao GLOBO, durante visita ao Brasil para participar do festival Mulheres Pelo Mundo (WOW), Assa comparou a atuação da polícia francesa em bairros operários com a truculenta ação policial nas favelas cariocas, e reiterou que o sistema judicial francês é racista: "A França não assume a responsabilidade pelo seu passado colonial e como não assume a responsabilidade pela escravidão, também não pode assumir a responsabilidade pela violência policial".

Como nasceu seu ativismo?

Minha luta começa no dia 19 de julho de 2016. Estava em uma viagem de trabalho, tinha viajado no dia anterior. Naquela noite, soube que meu irmão havia sido morto pela polícia. Voltei para França, não queria que a história dele, nem a violência policial contra ele, fosse esquecida, o que acontece com muita frequência no nosso país. Entendi muito rapidamente que o Estado e a Justiça francesa existem para proteger a polícia. Ele era a vítima, mas se tornou o culpado. Os países coloniais têm um manual escrito há anos e quando ele foi morto esse manual foi logo aplicado: é o processo de criminalização [dos negros]. Logo começaram a mentir. Falaram que meu irmão morreu de problemas cardíacos, depois por excesso de calor. Mentiram novamente dizendo que ele estava drogado e alcoolizado, o que também é falso. Eu e minha família fomos chamados para prestar declarações na Prefeitura e lá disseram que sabiam que nós éramos muçulmanos e que liberariam o corpo no dia seguinte para que ele fosse enterrado rapidamente [na tradição religiosa, o corpo deve ser enterrado em até três dias após a morte].  Mas o objetivo era outro. 

E qual era?

O que eles queriam era evitar que fosse feita uma segunda autópsia que mostrasse o que aconteceu de verdade com meu irmão, mas insistimos. Provamos que eles mentiram, conseguimos que o promotor fosse demitido, e que o caso fosse enviado a Paris. Lá entendi que minha luta estava começando e não seria fácil. Digo que me tornei uma guerreira, mesmo que não fosse o que eu quisesse, porque o Estado não estava do nosso lado, mas contra nós. Nesse momento, decidi que nossas famílias poderiam sim ser vítimas da violência, mas nunca seríamos vítimas do Estado.

A ativista francesa Assa Traoré — Foto: Leo Martins/Agencia O Globo
A ativista francesa Assa Traoré — Foto: Leo Martins/Agencia O Globo

Você citou outros casos semelhantes, de famílias que perderam seus parentes nas mãos da polícia francesa. Nos Estados Unidos, casos assim são denunciados com frequência. Na França é diferente?

Antes deste caso não se falava em violência policial na França. Tivemos que impor esse debate, mas sentimos na pele as consequências. Todos meus irmãos foram presos: colocaram homens negros na prisão apenas por ousarem falar do racismo policial no país. Assim como o Estado, a polícia francesa segue um comportamento colonial e nós pagamos por isso. Por isso, antes de a minha história ser conhecida internacionalmente, ela precisou ser conhecida na França. 

Como foi esse processo? Você pensou em desistir, sofreu ameaças?

Não foi fácil, mas conseguimos que o movimento pedindo justiça por Adama se tornasse um símbolo da luta contra a violência policial no país. Na mesma época que veio à tona o caso de George Floyd, nos Estados Unidos, saiu o primeiro resultado da causa da morte de meu irmão, que dizia que ele morreu por calor excessivo. Organizamos várias passeatas, a primeira com 80 mil pessoas, a segunda com 120 mil, muitas com manifestantes de bairros mais pobres, mas também de riscos, representando a sociedade francesa como um todo. Já haviam passado cinco anos da morte do Adama, e foi quando o mundo descobriu que a violência policial também existia na França. Dei entrevistas para jornais e mostrei para o mundo que a França não era só a Torre Eiffel. E quando  perceberam que o povo estava conosco, nos apoiando, começaram a nos atacar diretamente. No julgamento, tive que me sentar frente a frente com os policiais que mataram meu irmão. Recebi ameaças de estupro, a ONU teve que pedir proteção para mim. Mas provei que a violência policial era um problema da sociedade civil.

O racismo policial na França é tão grande quanto nos EUA?

Sim. Mostramos para o mundo como a população negra, principalmente estrangeira, vive na França um racismo profundo e sistêmico, que estava escondido. Quando as vítimas vêm dos bairros populares da França, a justiça sempre fica do lado da polícia. Sem câmeras e vídeos, a justiça sempre tenta criminalizar as vítimas. A polícia pode ser violenta porque tem a certeza de que nada vai acontecer. Antes as famílias não ousavam falar sobre isso, os ativistas falavam por elas. E eu disse a eles: 'Se vocês querem que a luta avance, vocês precisam levantar suas vozes'. Organizamos marchas grandes, em Paris, porque as polícias querem que a luta não saia dos bairros operários, já que assim justificam seus atos, dizendo que a violência está localizada ali e é preciso fazer incursões policiais. Queremos fazer disso uma luta da sociedade francesa, para que, mesmo quem não sofra essa violência, assuma seu papel e não continue sendo um mero espectador.

A senhora fala da questão colonial para explicar a violência do Estado e da polícia contra negros. Poderia explicar melhor essa relação?

A França não assume a responsabilidade pelo seu passado colonial e como não assume a responsabilidade pela escravidão, também não pode assumir a responsabilidade pela violência policial [contra negros e pobres]. A polícia francesa foi construída sobre uma base muito racista durante a colonização e, ao fingir que o racismo não existe, o país não avança de jeito nenhum. É um país que não escuta o seu povo, diferentemente dos EUA, onde há mais discussão e por isso mais avanços. É um país que está em negação, que se esconde atrás dos benefícios sociais. É um país que se autodenomina como bastião da democracia, uma ideia que é completamente falsa. Em julho deste ano fomos proibidos de nos manifestar, nossa liberdade de expressão e manifestação foi negada. Onde quer que estejamos, nós, negros, não temos mais o direito de marchar. Vir ao Brasil hoje, é um ato político muito forte porque estamos mostrando para o mundo inteiro o que está acontecendo.

A senhora visitou favelas cariocas nos dias que esteve aqui. Qual foi sua impressão?

O lugar em que me senti melhor foi na favela [da Rocinha], onde estive todos os dias. Conheci muita gente, pessoas incríveis. Não estou dizendo que não vi todos os problemas que existem lá, mas me senti como nos bairros da classe trabalhadora na França. É a mesma coisa, exceto que aqui é um pouco mais precário, um pouco mais difícil. Mas os homens negros, lá e aqui, sofrem do mesmo problema. Não querem, lá e aqui, que eles participem da construção do país, querem que sejam vistos como traficantes ou pessoas violentas. A problemática é a mesma.

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