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Por — Berlim

Caminhar pelo labirinto irregular de mais de 2.700 blocos de concreto no Memorial aos Judeus Mortos da Europa, em Berlim, traz à tona sensações como desconforto e solidão. Era o que buscava o arquiteto Peter Eisenman ao projetá-lo, permitindo que a experiência individual de cada visitante estimulasse uma reflexão sobre a natureza sombria da História alemã no século XX. Para o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla original), contudo, o local é um "monumento da vergonha", como o descreveu Björn Höcke, líder de facto sigla em um discurso em 2017.

Seis anos mais tarde, a fala que já desafiava a cimentada cultura de recordação histórica alemã — causando uma onda de indignação no meio político e na população tradicionalmente sensibilizada em relação ao passado — ressoa com um peso ainda maior diante da recente consolidação do partido como o segundo maior no país e com a perspectiva de ganhar ainda mais terreno, sobretudo com as eleições do Parlamento Europeu em junho de 2024.

Fundado em 2013, a AfD emergiu inicialmente como uma saída para a insatisfação crescente entre alguns setores da população alemã em relação às políticas de austeridade implementadas em resposta a uma crise financeira.

Naquela época, entretanto, a legenda não tinha exatamente a mesma cara de hoje, como explicou ao GLOBO o professor de História Moderna Uffa Jensen, vice-diretor do Centro de Pesquisa sobre Antissemitismo da Universidade Técnica de Berlim, sendo uma "mistura complexa de diferentes grupos políticos". Já havia, porém, uma "clara agenda de extrema direita, nacionalista e racista", aponta o professor.

— Ao longo dos anos, os extremistas se tornaram cada vez mais influentes no partido. Atualmente, controlam muitas de suas seções regionais — diz o professor. — Eles consistentemente construíram sua agenda questionando a cultura de lembrança da Alemanha, especialmente no que diz respeito ao Holocausto.

'Culto à culpa coletiva'

A glorificação de um passado "mítico", com críticas ao que o partido chama de "culto à culpa coletiva", vai de encontro com as tentativas alemãs de confrontar sua História. Após a Segunda Guerra Mundial, o país adotou uma postura de responsabilidade coletiva, reconhecendo a participação da sociedade ao tolerar crimes perpetrados naquele período. Desde então, essa cultura de lembrança se manifesta em leis rigorosas e uma série de iniciativas, como a construção de memoriais, museus e a promoção de uma educação crítica sobre o nazismo nos currículos escolares.

Na visão do partido, porém, o país já carrega uma carga "excessiva" de responsabilidade que pode levar a uma "visão negativa da identidade alemã", sendo necessária uma revisão dessa abordagem — ou, como disse Höcke em 2017, "uma virada de 180 graus" na maneira como o país lida com o assunto.

Outro exemplo que também rendeu uma série de condenações foi uma declaração de Alexander Gauland, então líder da AfD, ao afirmar, em 2018, que "Hitler e os nacional-socialistas não foram mais do que um excremento de pássaro em mil anos de uma História alemã de sucesso".

Mas falas como essas não ficaram no passado recente da AfD. Em setembro deste ano, por exemplo, o discurso de "fim da culpa" foi amplamente defendido pelo principal candidato à Prefeitura de Nordhausen, no Leste alemão (região onde o país tem um apoio estimado em 30%), Jörg Prophet, antes de perder no segundo turno por uma margem relativamente pequena.

Palavras semelhantes também foram ditas por um parlamentar da AfD e ouvidas pela reportagem durante uma mesa de conversa com membros da Comissão de Assuntos Culturais e Mídia, na ocasião de uma visita ao Bundestag (o Parlamento alemão) em outubro, provando que os ideais do partido têm uma base comum e consolidada.

— Seus representantes e simpatizantes frequentemente atacam diversos locais de memória alemães, como antigos campos de concentração nazistas, difamando pessoalmente os funcionários dessas instituições — diz Jensen. — Ou eles consistentemente tentam minar o financiamento público desses lugares para impedir seu funcionamento adequado.

Para o historiador, contudo, mesmo que continue ganhando mais força política, a AfD dificilmente lançará um ataque total à cultura de memória alemã — ao menos não de imediato —, adotando uma "abordagem gradual", com um desmonte inicialmente focado em projetos locais menores. Mas o quadro pode mudar significativamente no momento em que o partido conseguir entrar em uma coalizão governista (uma ideia, até então, amplamente rejeitada pelos principais partidos), tornando real o perigo do desfinanciamento e descontinuação de estudos e programas.

Björn Höcke, líder regional do AfD, é acusado de usar slogan nazista durante campanha eleitoral de 2021 — Foto: JENS SCHLUETER / AFP
Björn Höcke, líder regional do AfD, é acusado de usar slogan nazista durante campanha eleitoral de 2021 — Foto: JENS SCHLUETER / AFP

Juventude distante

Somado ao risco de revisionismo histórico que o avanço do partido representa, há ainda uma preocupação com a juventude alemã, que se afasta aos poucos do passado, como demonstrou um estudo de 2023 da Fundação Memória, Responsabilidade e Futuro (EVZ, na sigla em alemão).

Segundo o documento, embora jovens da geração atual deem grande valor, no geral, à preservação histórica no país — tendo uma base educacional sólida e acesso amplo à informação —, existe um inevitável distanciamento individual acerca do tema. Isso porque seus contatos familiares diretos (sejam aqueles que foram vítimas ou perpetradores) vão se perdendo com o passar dos anos, o que pode levar ao enfraquecimento futuro da cultura de lembrança por não haver mais identificação com a História.

— Uma cultura de lembrança pode abrir espaços, lugares e momentos no tempo, nos quais, como sociedade e indivíduos, podemos refletir sobre nosso passado e presente, sobre nossos valores e comportamentos — disse ao GLOBO Hetty Berg, diretora do Museu Judaico de Berlim, um dos mais famosos e visitados da capital.

Crescimento da AfD na Alemanha na última década — Foto: Editoria de Arte / O Globo
Crescimento da AfD na Alemanha na última década — Foto: Editoria de Arte / O Globo

Crescimento em momento de crise

Em 2017, o partido entrou para Parlamento pela primeira vez, tornando-se, à época, a terceira maior força política no país, com 94 parlamentares eleitos (de 736 no total). Nas eleições seguintes, em 2021, a legenda perdeu alguns assentos (ocupando os 78 atuais), mas voltou a ganhar força em seguida.

Hoje, essa popularidade já se traduziu em importantes e inéditas vitórias em eleições regionais nos últimos meses, sobretudo na antiga Alemanha Oriental, e um recorde de 23% das intenções de voto no país — deixando o Partido Social-Democrata (SPD) do chanceler Olaf Scholz para trás, segundo sondagem de dezembro do site Politico. A legenda é superada apenas pela aliança dos Partidos da União (CDU/CSU), principal força política alemã no pós-Segunda Guerra, que hoje aparece com 31%.

O motivo dessa ascensão pode ser explicado pela "crise do custo de vida, preocupações com a imigração em alta na Europa, a economia e a oposição de parte da população aos gastos do país com o armamento da Ucrânia em sua guerra contra a Rússia", segundo o professor Augusto Zanetti, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Franca.

A natureza "caótica" da coalizão governista — chamada de "semáforo" pelas cores de cada legenda — entre o SPD, o Partido Liberal Democrático (FDP) e o Partido Verde também contribuiu para esse cenário, aponta Zanetti.

— Diante de crises profundas, a tendência é que haja maior descontentamento por parte da população. Eles veem um sentimento de mudança e apelam para a extrema direita — diz.

Além da Alemanha

O cenário atual sinaliza uma perspectiva bastante favorável para as eleições do Parlamento Europeu — uma das principais instituições da União Europeia (UE) e que desempenha um papel central no processo legislativo e de supervisão do bloco —, com a AfD podendo aumentar seu número de assentos (a legenda elegeu nove eurodeputados nas últimas eleições, em 2019) e estender ainda mais sua influência.

Segundo o cientista político Pedro Castelo Branco, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o contexto é favorável ao populismo de extrema direita não apenas na Alemanha, mas em toda a Europa.

— Eles vêm conquistando eleitores ao criticar a política tradicional, a crise econômica, a guerra na Ucrânia e no Oriente Médio — diz Castelo Branco. — Mas o curioso é que o partido é contrário ao próprio Parlamento Europeu. Sua forma de participação seria para minar as próprias estruturas, então é um paradoxo, mas típico de movimentos populistas.

Segundo projeções do Politico e do Europe Elects, o Identidade e Democracia (ID), grupo que abrange a AfD e outros partidos de extrema direita com as mesmas visões, poderá ganhar até 10 novos assentos (chegando a um total de 86 membros eleitos), tornando-se a terceira coligação com maior força no órgão.

*A repórter viajou a Berlim em outubro a convite do Consulado Alemão no Rio de Janeiro e do Ministério de Relações Exteriores da Alemanha

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