Enquanto a Rússia luta uma guerra com a Ucrânia no Leste, uma pequena revolução acontece no sistema escolar do país. Com o discurso cada vez mais contestado na comunidade internacional, o presidente Vladimir Putin e seu gabinete tentam emplacar uma versão alternativa — nacionalista e militarizada — da História russa entre a juventude. Novos livros que apontam o conflito como uma guerra contra o "nazismo ucraniano" foram introduzidos no currículo escolar, ao passo que iniciativas para ensinar crianças e adolescentes até mesmo a atirar com munição real ganham espaço.
Um novo volume de História foi inserido no ensino médio russo neste mês, alterando a forma como uma série de acontecimentos dos últimos 80 anos eram tradicionalmente apresentados aos estudantes. Entre os revisionismos, Josef Stálin é retratado como um líder "sábio e eficaz", e as perseguições realizadas por ele — entre 1936 e 1938, o chamado Grande Expurgo resultou na morte de entre 700 mil e 1,2 milhão de pessoas — foram contra pessoas que mereciam aquele destino. O fim da União Soviética teria sido culpa exclusiva de Mikhail Gorbachev, enquanto versões anteriores dos livros russos apresentavam o declínio soviético a partir de uma abordagem sistêmica, que considerava pontos como a ineficiência da economia planificada e os impactos da corrida armamentista, que drenou recursos do país.
A análise sobre o novo material didático foi feita pelo jornalista e escritor russo Mikhail Zygar. Em um artigo para o The New York Times, Zygar afirma que o novo livro introduzido no currículo apresenta apenas "propaganda de extrema direita", classificando as alterações como "um conjunto de clichês reciclados da televisão russa".
"O livro foi escrito, entre outros, por Vladimir Medinsky, ex-ministro da Cultura russo e atualmente conselheiro presidencial. Medinsky ocupa um outro papel, mais secreto: ele é o ghostwriter de Vladimir Putin. Trabalhando com um time de assistentes, ele escreve textos sobre história em nome de Putin", afirmou Zygar, que conheceu o conselheiro no Instituto de Relações Internacionais de Moscou, nos anos 1990.
O livro dedica 28 páginas à guerra na Ucrânia, que os autores enquadram como uma resposta a um Ocidente cada vez mais agressivo que pretendia usar a Ucrânia como um “aríete” para destruir a Rússia. Livros didáticos de História revisados para estudantes mais jovens serão lançados no próximo ano, de acordo com um relatório da RIA Novosti, um meio de comunicação estatal russo.
Ecoando as palavras do próprio Putin, os autores acusaram os Estados Unidos de espalhar o que chamam de “russofobia” nas ex-repúblicas soviéticas e de intensificar a guerra na Ucrânia, deixando a Rússia “sem outras alternativas” a não ser apelar a uma mobilização parcial que enviou 300 mil homens para o serviço militar em 2022.
"Dada a obsessão do presidente com a História e o uso dela para justificar seu regime, Medisnsky ocupa uma posição importante na Rússia hoje. Das sombras, ele ajudou a construir a fundação ideológica e histórica na qual o controle de Putin se assegura", acrescentou Zygar.
A mudança na bibliografia é apenas uma das alterações feitas por Putin e seus aliados na grade curricular, com objetivo de fundamentar essa visão particular sobre o país. Em agosto, o presidente assinou uma lei que cria a disciplina "Fundamentos da Segurança e Defesa da Pátria" (em tradução livre), cujo objetivo é treinar os estudantes no uso de fuzis, granada de mão e pilotagem de drone, por exemplo.
Autoridades russas confirmaram que veteranos da guerra na Ucrânia estão sendo treinados para conduzir as aulas aos estudantes. O que acontece até o momento ainda seria uma versão de teste, a ser implantada totalmente a partir de 2024.
“[O projeto tem como objetivo] incutir uma compreensão e aceitação da estética dos uniformes militares, dos rituais militares e das tradições de combate”, aponta um documento do Ministério da Educação russo descoberto por o meio da iniciativa russa independente Important Stories, reproduzida pela CNN.
De acordo com uma pesquisa realizada pela rede americana, consultando fontes de notícia e redes sociais russas, crianças de até sete ou oito anos já estariam recebendo treinamento militar básico. De acordo com um comunicado do ministério da Educação russa, também reproduzido pela emissora, os alunos do ensino médio seriam os únicos a serem treinados com munição real, "exclusivamente em linhas de tiro".
“O novo currículo serve três objetivos: doutrinar os alunos com a lógica do Kremlin para a ‘Operação Militar Especial’, incutir nos alunos uma mentalidade marcial e reduzir os prazos de treino para a mobilização e implantação subsequentes”, escreveu o Ministério da Defesa do Reino Unido, em um boletim do começo do mês, reproduzido pela Al-Jazeera.
Segundo a Rádio Europa Livre, a partir do novo ano letivo, os alunos do 10º ano do ensino básico aprenderão “elementos de preparação militar básica”. No 11º ano, essas lições continuarão com “a formação da identidade cívica russa, o patriotismo e um sentido de responsabilidade para com a pátria”, bem como o desenvolvimento da “convicção e prontidão para o serviço e defesa da Pátria e um sentido de responsabilidade sobre seu destino.”