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Por Emanuelle Bordallo

Quando a cidade de Kherson, no sul da Ucrânia, foi ocupada pela Rússia em março de 2022, todas as crianças que viviam na região foram obrigadas a estudar em escolas russas. Kirilo Sakalo, de 12 anos, era um desses jovens ucranianos. Para amenizar o constante clima de tensão causado pelo conflito, um professor sugeriu um passeio à turma: passar duas semanas de férias em um acampamento em Yevpatoriya, na Crimeia, península ucraniana anexada por Moscou em 2014. No dia 7 de outubro, um mês antes de o Kremlin retirar suas tropas da região diante de uma contraofensiva ucraniana, ele e seus colegas de classe partiram rumo ao destino.

As duas semanas se passaram, depois mais três, quatro, até que transcorreram seis meses e Kirilo não havia voltado. O acampamento, na realidade, era um "campo de reeducação" no qual o menino era ensinado sobre a cultura russa e obrigado a cantar o hino nacional russo. Caso se negasse a cumprir alguma ordem, o inspetor — sempre vestido com colete à prova de balas e usando capacete, já que estavam a apenas 160 quilômetros da linha de frente — impunha castigos como andar horas em círculo. Certo dia, o homem anunciou que os pais não queriam mais as crianças, então aqueles que não fossem buscados até o fim de abril de 2023 seriam enviados para adoção na Rússia.

Segundo Kiev, 16 mil crianças ucranianas foram deportadas ilegalmente — ou "sequestradas" — pelo Exército russo para regiões sob o controle de Moscou desde o início do conflito, em fevereiro do ano passado. A acusação pela prática, considerada crime de guerra, motivou o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, a emitir um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin e sua comissária para os Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova, em março.

Enquanto Kirilo planejava maneiras de fugir da instituição, próxima a uma área cercada por minas explosivas, sua mãe, Natalia Sakalo, tentava desesperadamente encontrá-lo. Junto de outros pais preocupados, ela partiu para uma viagem de quase 9 mil quilômetros, atravessando Ucrânia, Polônia, Bielorrússia e Rússia até chegar ao campo de reeducação, com o auxílio da ONG Save Ukraine.

— De primeira, eu não o reconheci. Ele tinha crescido tanto, estava mais alto e seu cabelo mais comprido — conta Natalia. — Abraçá-lo de novo foi a melhor sensação do mundo.

Trajeto percorrido por Natalia Sakalo para encontrar seu filho, Sikilo — Foto: Editoria de Arte
Trajeto percorrido por Natalia Sakalo para encontrar seu filho, Sikilo — Foto: Editoria de Arte

Desde o início do conflito, a Save Ukraine já recuperou quase cem crianças deportadas ilegalmente para a Rússia e 120 enviadas para territórios ocupados na Ucrânia. A central de atendimento da ONG recebe mais de 300 ligações por dia de pais em busca de menores desaparecidos.

De acordo com a organização, existem diversas motivações por trás do suposto sequestro de menores por Moscou, como compensar as perdas demográficas causadas pela guerra. No entanto, há justificativas mais complexas, como promover uma limpeza étnica que, em vez de matar crianças, "reeduca-as" para que futuramente lutem pela Rússia. A estratégia também ilustra a narrativa russa de uma "única nação", na qual a propaganda do Kremlin afirma estar "resgatando crianças dos nazistas ucranianos", explica a Save Ukraine.

O Parlamento russo aprovou neste ano mudanças na legislação para facilitar a concessão de nacionalidade russa a menores ucranianos, apesar de o direito internacional proibir adoções de crianças estrangeiras durante conflitos armados.

Viktoria Indrisova, estoniana que atua como voluntária da Save Ukraine, conta que, nas visitas que fez à Ucrânia durante o conflito, casos como o de Natalia e Kirilo Sakalo eram comuns.

— Conheci uma mulher que foi feita refém pelas forças russas e, quando conseguiu escapar, descobriu que seus filhos haviam sido roubados e levados para a Rússia — relatou ao GLOBO. — A Ucrânia está repleta de histórias de violência contra mulheres e crianças.

Kirilo Sakalo e sua mãe, Natalia, retornando para casa após o menino passar seis meses em um campo de reeducação russo — Foto: Divulgação/Save Ukraine
Kirilo Sakalo e sua mãe, Natalia, retornando para casa após o menino passar seis meses em um campo de reeducação russo — Foto: Divulgação/Save Ukraine

Golpes com desaparecidos

Diariamente, o escritório da Agência Central de Rastreamento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) dedicado à guerra na Ucrânia recebe cerca de 400 chamadas. Os motivos por trás dos desaparecimentos vão desde prisões por tropas inimigas até perda de contato durante deslocamentos ou fugas do país. Há cerca de 8 mil casos em aberto, segundo o comitê, que incluem civis e militares. Desde março de 2022, mais de 62 mil solicitações já foram feitas por pessoas em busca de seus entes queridos que se perderam em meio ao conflito.

Atualmente, o CICV trabalha com uma base de dados global que conecta solicitações abertas em qualquer lugar do mundo. A partir de um cuidadoso trabalho de identificação da pessoa desaparecida — que coleta dados básicos, como nome e idade, até características mais específicas, como tatuagens e marcas de nascimento — as informações são cruzadas. No entanto, muitas vezes é necessário um minucioso trabalho de checagem quando, por exemplo, há nomes homônimos ou a grafia muda de acordo com a nacionalidade — algo comum entre russos e ucranianos.

Os dados são enviados a delegados autorizados a circular perto das zonas de conflito, uma vez que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha é um ator neutro entre as partes, obrigadas a fornecerem informações segundo as Convenções de Genebra. Assim, os funcionários em campo conseguem, por exemplo, livre acesso aos prisioneiros de guerra, permitindo não só que desaparecidos nestas condições sejam localizados, como também recebam e enviem recados aos seus familiares.

Agência Central de Busca do Comitê Internacional da Cruz Vermelha — Foto: Caitlin Kelly/Comitê Internacional da Cruz Vermelha
Agência Central de Busca do Comitê Internacional da Cruz Vermelha — Foto: Caitlin Kelly/Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Erika Chappuis, porta-voz da Central de Rastreamento, conta que há uma série de desafios envolvidos nessa busca por pessoas que desapareceram no contexto da guerra.

— Este é um conflito em que os familiares estão enfrentando um grande volume de desinformação. Há várias listas falsas de mortos e desaparecidos circulando no Telegram e no Facebook. As famílias frequentemente são abordadas por pessoas que tentam aplicar golpes — conta Chappuis.

Mas também há histórias felizes, como contou Anastasia Kushleyko, líder da área responsável pelo restabelecimento de conexões familiares na Ucrânia.

— Uma vez uma mãe entrou em contato com a gente procurando seu filho, que ela tinha quase certeza que estava morto, e através da nossa base conseguimos localizá-lo e descobrimos que ele estava vivo e a poucos quilômetros de distância dela — conta.

Reencontro na fuga

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o conflito na Ucrânia provocou a maior crise de deslocamento forçado do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. São mais de 8 milhões de refugiados e 6 milhões de deslocados internos. A maior parte das pessoas que fugiram de suas casas são mulheres, crianças e idosos, já que homens maiores de 18 anos são proibidos de deixarem o país. Diante do intenso fluxo de deslocamento, muitos se perderam de seus familiares.

Raquel Trabazo, chefe do escritório do Acnur na Ucrânia, afirma que o trabalho da instituição envolve lidar com o conceito da perda de forma multidisciplinar.

— Há pessoas que perderam familiares pela morte, tem a separação e as perdas materiais que mudam a dinâmica interna da família. Em termos de auxílio psicológico, existe a necessidade de superar o trauma. Por conta da separação familiar, há ainda muitas crianças desacompanhadas, então precisamos fazer todo um trabalho de segurança jurídica também — explica.

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