Mundo
PUBLICIDADE

Por Amanda Scatolini

"Eu não tenho leite. Não tenho o que comer, não como há vários dias”, respondeu uma jovem mãe quando lhe perguntaram sobre o teor do líquido esverdeado na mamadeira que oferecia ao recém-nascido em seu colo, em uma ala da maternidade da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) na província de Khost, no Afeganistão. Era chá verde, que lhe fora oferecido pela equipe do hospital para consumo próprio, mas inadequado para o bebê de apenas sete dias, como tentava explicar uma enfermeira. A jovem, no entanto, não conseguia compreender. A preocupação com a saúde do filho, nascido prematuramente, falava mais alto.

Descrita por Renata Viana, gerente de assuntos humanitários da MSF, a cena no hospital em Khost não é um caso isolado no país assolado por uma grave crise humanitária, agravada após a volta do Talibã ao poder, há exatamente um ano. Viana, brasileira de 45 anos que atua na MSF desde 2017 e voltou brevemente ao Rio após seis meses no Afeganistão, diz que, no último ano, relatórios da organização têm mostrado um aumento de pacientes nos hospitais, principalmente por desnutrição. As crianças estão entre as maiores vítimas.

— Temos a sensação de que a situação se deteriorou ainda mais. Ouvimos mais relatos das dificuldades econômicas, de se obter alimento — relata Viana, que voltará em setembro ao país da Ásia Central, onde trabalha dando assistência a pacientes e famílias em diferentes províncias. — São muitas histórias de pessoas que adiam a ida ao hospital porque não tem dinheiro nem para o transporte. E, quando vão, às vezes o local não tem estrutura, ou tem, mas não há funcionários ou medicamentos.

Após anos de guerras civis ou contra potências externas desde a invasão soviética de 1979, a precariedade da vida no Afeganistão ganhou novas proporções a partir da saída dos EUA e seus aliados, em agosto do ano passado. Com o retorno dos talibãs ao controle de Cabul —20 anos após seu primeiro governo ser derrubado pela invasão americana de 2001, acusado de dar abrigo a Osama bin Laden, chefe da rede terrorista al-Qaeda —, a economia entrou em colapso, mulheres tiveram direitos revogados e a imprescindível ajuda internacional foi prejudicada pelas sanções ocidentais ao novo regime.

— Independentemente do status ou da credibilidade do Talibã com governos de fora, as restrições econômicas internacionais ainda estão causando a catástrofe do país e prejudicando o povo afegão — disse John Sifton, diretor de assuntos da Ásia da organização Human Rights Watch.

Uma mãe de 16 anos leva o bebê de um mês e meio de idade para receber tratamento para desnutrição aguda em hospital do Médicos Sem Fronteiras, em Lashkar Gah, no Afeganistão — Foto: Oriane Zerah / Imagens cedidas pelo MSF
Uma mãe de 16 anos leva o bebê de um mês e meio de idade para receber tratamento para desnutrição aguda em hospital do Médicos Sem Fronteiras, em Lashkar Gah, no Afeganistão — Foto: Oriane Zerah / Imagens cedidas pelo MSF

Outros fatores também contribuem para piorar a situação. O país foi afetado pela alta dos preços dos alimentos — consequência da guerra na Ucrânia —, enfrenta secas históricas e sofreu em junho o mais letal terremoto das últimas duas décadas, com mais de mil mortos, três mil feridos e milhares de desabrigados.

— Ouvimos muitas histórias de paciente que diz que se alimentou de restos de pão velho doado, por exemplo. Há mulheres grávidas relatando que não têm o que comer, e depois passam por partos prematuros e, consequentemente, dão à luz bebês enfraquecidos que vão precisar de assistência médica — relata Renata Viana. — Há sempre algo chocante em qualquer lugar que se vá.

Dados alarmantes ratificam o depoimento. Cerca de 95% dos 39 milhões de afegãos se alimentam de forma insuficiente, de acordo com as Nações Unidas, percentual que chega perto de 100% em lares chefiados por mulheres, em que é comum a adoção de “medidas drásticas” para a obtenção de alimentos, incluindo venda de crianças, casamentos de meninas em troca de dotes e até a venda de partes do próprio corpo, ainda segundo a ONU.

Mulheres sofrem mais

São dezenas de milhares de crianças internadas desde o início do ano para atendimento de emergência causado pela desnutrição aguda, já arraigada no país, relata a Organização Mundial da Saúde (OMS). A situação é ainda mais grave quando se levam em conta os casos de desnutrição aguda prolongada em crianças com menos de cinco anos, que pode levar a graves problemas de saúde posteriormente, incluindo o nanismo. A OMS estima que 1,1 milhão de crianças afegãs nessa faixa etária estão nesse quadro de gravidade.

No primeiro semestre de 2022, só a MSF atendeu mais de 3.700 crianças desnutridas, 70% do total da organização no país em todo o ano 2021 (5.470). Quase 20 milhões de pessoas, das quais 9,2 milhões de crianças, devem enfrentar altos níveis de insegurança alimentar aguda neste ano, segundo estimativa de julho do Programa Mundial de Alimentos (PMA). Na província Ocidental de Ghor já foi atingida o nível 5, máximo, de desnutrição aguda, considerado “catastrófico” no sistema de avaliação do PMA.

Com a alta demanda, hospitais e outras unidades de saúde — com infraestrutura precária e número insuficiente de profissionais — ficam lotados, comprometendo o atendimento geral com a priorização dos casos considerados mais graves. A conduta, afirma Renata Viana, transforma os atendimentos emergenciais em um ciclo interminável de idas e vindas de pacientes, cujos casos evoluem rapidamente sem um tratamento e acompanhamento adequados.

Em julho, um hospital no distrito de Musa Qula, no Sul do país, foi forçado a atender apenas pessoas com sintomas típicos de cólera, uma consequência do terremoto do mês anterior, segundo a ONU. Cerca de meio milhão de casos de diarreia aguda e aquosa foram relatados no país em junho.

— É muito difícil — disse à AFP o diretor do hospital, Ehsanullah Rodi. — Não tínhamos visto nada assim no ano passado ou antes.

Diante de tantas histórias que ouve e observa, Renata Viana ressalta um ponto: a falta de esperança nos olhos da maioria, sobretudo das mulheres. Isso porque, segundo ela, é comum se deparar com mães que relatam situações em que se veem impedidas de sair para procurar assistência médica para os filhos por falta de autorização de algum membro da família do sexo masculino — uma das inúmeras exigências do grupo fundamentalista.

Uma mãe senta em uma cama de hospital com os gêmeos de quatro meses na ala de atendimento à desnutrição no hospital do MSF em Lashkar Gah, Afeganistão — Foto: Lillian Suwanrumpha / AFP
Uma mãe senta em uma cama de hospital com os gêmeos de quatro meses na ala de atendimento à desnutrição no hospital do MSF em Lashkar Gah, Afeganistão — Foto: Lillian Suwanrumpha / AFP

Com a ascensão do Talibã, muitas mulheres perderam seus empregos, o que impactou as famílias em que elas são as principais ou únicas fontes de renda. Sem dinheiro, não há para onde fugir.

— O que mais me marca quando eu converso com essas pessoas é quando falam que olham para um lado e para o outro e não veem solução — lamenta Viana. — Alguns dizem que, se pudessem, sairiam do país. Mas não é tão fácil, as dificuldades são muitas, especialmente para as mulheres. É uma situação triste quando a gente percebe que a esperança já não existe mais ali.

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Cantora falou sobre a falta de reconhecimento como compositora e relembrou música que fez para o ex, Chico Moedas

Luísa Sonza rebate comentários machistas sobre 'Chico': 'O dinheiro vai todo para mim'

Ele fez publicação sobre viagem dois dias antes do acidente: 'Feliz de realizar este sonho antigo'

Após acidente em safári na Namíbia, médico brasileiro posta primeira foto nas redes sociais

Fenômeno se fortalece sobre o Atlântico e deve atingir Barbados, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Granada

'Extremamente perigoso': furacão Beryl tem ventos de 215 km/h e é elevado à categoria 4

Uma semana antes outro casal foi abordado na mesma rua

Em mais um caso, moradores são assaltados ao chegar em casa, na Tijuca; veja vídeo

Suspeito estava levando a carga do Complexo do Alemão para a Região dos Lagos

Homem é preso na BR-101 com mais de 15 quilos de cocaína e maconha

De olho em 2026, presidente retorna ao Rio para inauguração de unidades habitacionais

Em agenda no Rio, Lula ironiza Bolsonaro e se derrete por Paes: 'melhor gerente de prefeitura que esse país já teve'

Presidente francês arrisca compartilhar o poder com um governo de ideologia política diferente, a menos de um mês do início dos Jogos Olímpicos de Paris 2024

Entenda decisão arriscada de Macron para antecipar eleições na França

País registrou 40 incêndios só no sábado (29); previsão é que novos desastres ambientais voltem a acontecer neste domingo

Com novo incêndio florestal, Grécia soma dezenas de queimadas e espera verão complicado

Prefeito inaugura complexo habitacional ao lado de Lula na Zona Oeste

Em entrega de obra na Zona Oeste, Eduardo Paes agradece a Lula e fala sobre 'quedinha especial' do presidente pelo Rio

Lucinha é denunciada por fazer parte da milícia de Zinho, na Zona Oeste do Rio

Junior da Lucinha, filho de deputada acusada de integrar grupo criminoso, participa de evento com Lula em área de milícia