Mundo
PUBLICIDADE

Eles não participam das mesas de negociação, não financiam e armam as partes do conflito, e não desenvolvem estratégias militares. Tampouco foram os responsáveis pelo 7 de outubro, quando o Hamas atacou o sul de Israel, fazendo 1,2 mil mortos e mais de 240 reféns. Ainda assim, as crianças e os adolescentes palestinos da Faixa de Gaza são um das principais vítimas da represália levada a cabo pelo Estado judeu: em seis meses de guerra completados neste domingo, representam quase 44% dos mais de 33 mil mortos, e mesmo os que sobrevivem encontram pouco alívio em vida.

A jovem Mays, de 13 anos, vivia com a família em Jabaliya, perto da praia no norte de Gaza, quando a guerra estourou. No fim de outubro, ela estava refugiada com a família em outro lugar, que julgavam mais seguro para se proteger dos ataques israelenses. Em uma noite, Mays estava no quintal, e duas de suas irmãs, no quarto dentro de casa.

— Eu as ouvia rindo. A próxima coisa de que me lembro é de estar no Hospital al-Shifa. A risada delas é a última coisa de que me lembro — contou ela em depoimento ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em janeiro, já instalada em um abrigo em Khan Younis, no sul do enclave. — Minhas irmãs morreram (...). Tive queimaduras no corpo, minha perna foi quebrada feio e agora é presa por pinos que chegam aos ossos. Dói muito todo dia. Quero que isto [a guerra] termine.

Gaza é lar de pouco mais de um milhão de crianças e adolescentes. Eles são quase metade (47%) do total de 2,2 milhões de habitantes, e a taxa de fecundidade é de 3,38 filhos por mulher, segundo The World Factbook, da Agência Central de Inteligência (CIA) americana. O Unicef estima que, até fevereiro, foram registrados mais de 26 mil nascimentos desde o início do conflito. Nesses 180 dias, o Gabinete de Comunicação Social de Gaza contabilizou cerca de 14.500 menores mortos até o fim de março — 1,3% de toda a população desse grupo.

— É uma guerra contra as crianças de Gaza, porque elas são a maioria, elas são as mais vulneráveis, elas são as que estão mais expostas às consequências dessa guerra — destacou o porta-voz da Unicef Ricardo Pires ao GLOBO.

Ele observa que a predominância de menores de idade entre as principais vítimas não é apenas condicional (mais crianças e adolescentes → mais mortos), mas também uma consequência das “circunstâncias às quais estão expostas”, um “combo” que transformou Gaza em um terreno mortal para eles.

Direitos desrespeitados

Entre eles está o bloqueio imposto por Israel a Gaza em 2007, que fechou o trânsito marítimo, aéreo e terrestre do enclave. Todas as crianças e adolescentes que hoje vivem a guerra nasceram e cresceram sob esse cerco, e o Unicef aponta que pelo menos 800 mil crianças — três em cada quatro — foram identificadas com necessidade urgente de ajuda com a saúde mental antes mesmo do início da guerra.

Em meio à guerra, as fronteiras fechadas impedem principalmente a fuga e a busca por abrigo em outros países. Presos na estreita faixa de terra, eles também padecem sob o “cerco total” imposto por Israel em 9 de outubro, dois dias após o ataque. A medida agravou a crise humanitária de uma Gaza já abalada ao diminuir drasticamente e dificultar a entrada de alimentos, água, combustível e outros tipos de suprimentos, como os hospitalares e os chamados alimentos terapêuticos prontos para uso, usados para tratamento de desnutrição aguda severa, enviados por organizações humanitárias, entre eles o Unicef.

A fome é iminente em áreas no norte do enclave, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), e 28 crianças morreram de desnutrição e desidratação até 1º de abril, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. Os palestinos, aponta o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (Ocha), representam atualmente 80% de todas as pessoas que enfrentam a fome grave no mundo, e pelo menos 50,4 mil crianças com menos de 5 anos sofrem de desnutrição aguda no norte do enclave. O Ocha afirma que, dos 36 hospitais de Gaza, apenas dez estão operando parcialmente.

Às vezes chega um caminhão e cada um de nós recebe uma pequena quantidade para beber. Caso contrário, temos de beber a água que usamos para nos lavar. Estou doente há semanas. — Mays, de 13 anos, em depoimento ao Unicef.

Mays, de 13 anos, sentada numa cadeira de rodas devido a uma lesão na perna, em um abrigo em Khan Yunis, sul de Gaza. — Foto: © UNICEF/UNI501951/El Baba
Mays, de 13 anos, sentada numa cadeira de rodas devido a uma lesão na perna, em um abrigo em Khan Yunis, sul de Gaza. — Foto: © UNICEF/UNI501951/El Baba

São também seis meses sem estudar: pelo menos 53 escolas foram “totalmente destruídas” desde o início da guerra e, desde meados de fevereiro, foi registrado um aumento de quase 9% nos ataques contra esses edifícios, segundo relatório do Unicef e das ONGs Education Cluster e Save the Children.

— Há vários casos em que os direitos das crianças não estão sendo respeitados — disse ao GLOBO a porta-voz da Save The Children, Emily Wight, apontando que o primeiro dele é “o direito à vida”.

Resoluções apelando à maior assistência humanitária ou proteção aos civis — como a apresentada à Assembleia Geral da ONU, em outubro, e outra ao Conselho de Segurança, em dezembro — foram aprovadas, mas até o momento não surtiram efeitos significativos na crise humanitária.

Israel, inclusive, tem ignorado a última resolução aprovada no fim de março pelo conselho, que exige um cessar-fogo imediato. Só nesta semana, um ataque israelense contra um comboio da ONG World Central Kitchen (WCK), que distribui cerca de 350 mil refeições diariamente, deixou sete trabalhadores humanitários mortos. Segundo o Ocha, em publicação na sexta-feira, pelo menos 225 agentes morreram desde o início do conflito.

— Também [não estão sendo respeitados] direitos como o acesso à ajuda em situações como essa. É contra o direito humanitário internacional impedir a entrada de ajuda em Gaza — afirmou Wight.

Física e psicologicamente vulneráveis

Crianças e adolescentes também são mais vulneráveis fisicamente, principalmente por serem menores, pontuou a porta-voz:

— Quando se trata de armas de guerra, como bombas e explosões, é mais provável que sejam, e isso é horrível de falar, arremessadas mais longe e com mais força, o que causa mais impacto em seus corpos.

As crianças, continuou Wight, também são mais suscetíveis à perda de sangue, lesões cerebrais traumáticas, concussões, danos às células nervosas e perda de audição. Devido à composição diferente dos órgãos e tecidos, as lesões causadas nos primeiros anos de vida podem ainda “afetar seu crescimento e desenvolvimento posteriores”. Desde o início do conflito até janeiro, mais de dez crianças perderam uma ou até as duas pernas em Gaza por dia.

— Estávamos esperando um táxi para nos tirar do nosso bairro e, de repente, houve uma explosão e acordei no hospital. Minha família foi morta, e minha perna foi amputada — contou Razan, de 11 anos, que perdeu a mãe, o pai e os três irmãos.

Me tornar órfã virou minha vida de cabeça para baixo — Razan, de 11 anos, em depoimento ao Unicef.

Razan, uma menina de 11 anos do bairro al-Zaytoon, na cidade de Gaza. Mudou-se para Rafah, no sul. — Foto: © UNICEF/UNI501908/El Baba
Razan, uma menina de 11 anos do bairro al-Zaytoon, na cidade de Gaza. Mudou-se para Rafah, no sul. — Foto: © UNICEF/UNI501908/El Baba

A falta de alimentos e a de água, ou até mesmo o excesso de água contaminada, costuma afetar em grande parte crianças abaixo de 5 anos de idade, que precisam de nutrientes e condições de básicas de saúde e higiene — raros durante a guerra — para o desenvolvimento e crescimento saudáveis. Recém-nascidos e crianças de até 2 anos dependem inteiramente do bem-estar materno para que possam crescer saudáveis, mas dados do Unicef apontam que 105 mil lactantes não conseguem se alimentar e, consequentemente, alimentar seus bebês.

Há ainda os impactos invisíveis, como o luto e a orfandade, que atingem diretamente as perspectivas de futuro, a capacidade de sonhar dessas crianças e adolescentes, e principalmente sua saúde mental. Mais de 1,7 milhão de palestinos estão deslocados dentro de Gaza, e metade são menores de idade. O Unicef estima que, até fevereiro, cerca de 17 mil crianças estejam desacompanhadas ou tenham sido separadas de suas famílias. Muitas porque os responsáveis estão buscando maneiras de sobreviver, mas outros porque simplesmente ficaram órfãos.

Com a voz embargada, Pires, do Unicef, recordou uma história relatada por um colega da agência que esteve em Gaza entre novembro e dezembro, sobre uma criança que se recuperava de um ataque que teria destruído sua casa: o pequeno Omar, de apenas 7 anos, perdeu a mãe, o pai e o irmão gêmeo.

— Enquanto ele se recuperava, ele continuava falando dos sonhos dele. Estava muito ferido e debilitado e ficava fechando os olhos. E a gente perguntava: 'Omar, por que você está fechando o olho mais uma vez durante tanto tempo?', e ficávamos até preocupados. E ele falava isso, 'estou tentando imaginar o rosto dos meus pais que foram tirados de mim. Não quero esquecer o rosto deles'— contou.

Hoje, é possível afirmar que "toda criança vivendo em Gaza está traumatizada", disse o porta-voz do Unicef. Os traumas — que Pires, arriscou dizer, deverão durar “muitas décadas” — tampouco são resolvidos com um cessar-fogo ou um acordo de paz. Demandará tempo e investimento para que as crianças possam voltar à sua rotina, aos seus direitos e “a poder sonhar com o futuro ou com uma profissão”.

— Estamos muito mais preocupados [hoje] com o fato de elas continuarem a sobreviver dia após dia, porque realmente a vida delas está em risco a cada dia devido à … — engoliu em seco, e acrescentou: — Eu já falei tanto sobre essa guerra, mas nem sempre em português, então às vezes me afeta de uma maneira diferente. As crianças vão sofrer o impacto disso por gerações, eu diria.

Mais recente Próxima Dois ataques contra adolescentes em escolas da França provocam comoção nas redes e indignação de Macron