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Entenda por que os enclaves de Luhansk e Donetsk são a faísca do conflito entre Rússia e Ucrânia

Desde 2014, separatistas estão em guerra pela independência dos territórios; na segunda-feira, presidente russo Vladimir Putin reconheceu a independência das regiões e anunciou o envio de uma 'missão de paz'
Gleb Yegorov, de 17 anos, na estação de ônibus em Stanytsia Luhanska. Ele disse que deixou o leste separatista da Ucrânia para escapar do alistamento militar Foto: Lynsey Addario / New York Times
Gleb Yegorov, de 17 anos, na estação de ônibus em Stanytsia Luhanska. Ele disse que deixou o leste separatista da Ucrânia para escapar do alistamento militar Foto: Lynsey Addario / New York Times

STANYTSIA LUHANSKA, Ucrânia — As pessoas passam pelo posto de controle arrastando malas de rodinha pela calçada lamacenta, atravessando uma das divisões políticas mais nítidas da Europa hoje.

Sob o sol do inverno na tarde de domingo, Gleb Yegorov, de 17 anos, chegou à Ucrânia depois de percorrer por uma zona-tampão de 800 metros e, na sequência, atravessar uma ponte de pedestres sobre uma ravina. À distância, disparos de artilharia eram ouvidos.

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Atrás dele estava a região separatista apoiada pela Rússia , conhecida como República Popular de Luhansk, da qual ele disse estar fugindo para escapar do alistamento militar. Yegorov mal conseguira sair, disse ele, após oito horas de interrogatório no lado separatista da travessia — para onde nunca mais voltará.

— Não há futuro para mim lá — disse ele. — Eles mandam meninos para o front e nem pensam sobre isso se eles morrerem.

Durante anos, a República Popular de Luhansk e a República Popular de Donetsk, outra região separatista na Ucrânia, foram amplamente ignoradas. Elas eram apenas duas pequenas entidades políticas singulares, retrocessos stalinistas com uma política interna muito esotérica para merecer atenção do mundo exterior.

No entanto, agora que a maior guerra na Europa em décadas pode depender delas, em alguns momentos Luhansk e Donetsk aparentam ser o foco do pensamento de todos. Na segunda, o presidente russo Vladimir Putin reconheceu a independência de ambas.

A divisão entre esses miniestados e a Ucrânia é reminiscente do Muro de Berlim — ou seja, uma separação que surgiu não da língua ou da etnia, mas da política ao estilo da Guerra Fria. De um lado da linha de frente de cerca de 400 quilômetros está a Ucrânia, uma nação de aparência ocidental que aspira a se integrar às democracias europeias. Do outro, estão cerca de 3,5 milhões de pessoas vivendo em estados basicamente policiais.

Nos últimos dias, ambos os lados da região no Leste da Ucrânia têm feito previsões assustadoras sobre um eventual acontecimento que terá muitas mortes em algum lugar nas aldeias de mineração e agricultura — e eles estão jogando a culpa para o outro antes mesmo de algo acontecer.

“O Exército russo e os serviços especiais estão preparando um ataque terrorista, cujas vítimas devem ser residentes pacíficos”, alertou o comandante das Forças Armadas ucranianas, Valery Zaluzhny, em comunicado no fim de semana. "O inimigo está tentando usar isso como justificativa para trazer o Exército russo como 'pacificador'".

No domingo, o Ministério do Interior ucraniano divulgou um comunicado dizendo que o Ministério da Informação da República Popular de Donetsk estava pré-posicionando equipes de filmagem em locais de supostos ataques iminentes de drones ucranianos. “O objetivo de tais ações é demonizar os militares ucranianos”, disse.

A República Popular de Luhansk, por sua vez, disse que seu serviço de segurança — conhecido como MGB, uma versão do nome usado pela KGB na União Soviética — descobriu um carro-bomba controlado por rádio ao longo da rota percorrida por ônibus que transportavam evacuados. Não foi possível, porém, verificar a alegação de forma independente.

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Aumentando as tensões, as repúblicas populares disseram que planejam evacuar 700 mil mulheres e crianças porque o Exército ucraniano planeja um ataque. Os governos ocidentais zombaram da ideia de que a Ucrânia lançaria um ataque no momento em que a Rússia acumulou, pelas estimativas americanas mais recentes, 190 mil soldados perto de suas fronteiras.

Moradores das regiões separatistas que evacuaram para a Rússia tinham visões totalmente diferentes da escalada de violência ao longo do front, acusando a Ucrânia de disparar artilharia contra cidades do lado que eles estavam.

Soldados ucranianos “estão a apenas 10 quilômetros de nós, e podemos ouvi-los muito bem”, disse Lyudmila N. Zueva, de 63 anos, ao entrar na Rússia no fim de semana.

Os enclaves se separaram em 2014 e, depois disso, dirigir para essas regiões no interior da Europa Oriental era viajar para um reino aparentemente distante do mundo contemporâneo. Pontes flutuantes foram erguidas ao lado de rodovias destruídas que traçam uma rota de cidades meio abandonadas. Acima, nenhum avião comercial pode ser visto. Os voos pararam em 2014 depois que um avião civil foi derrubado.

E o que acontece nas repúblicas é uma espécie de caixa preta.

Jornalistas internacionais conseguirem permissão para entrar pode ser um desafio. E apenas um grupo internacional, uma missão de monitoramento da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) com uma autoridade fraca, tem observadores no local.

No entanto, algumas informações emergiram.

A liderança militar e civil tem mudado entre cidadãos russos com ligações suspeitas com agências de inteligência e ucranianos locais com currículos modestos, e foi derrubada por uma série de expurgos violentos. Em vários momentos, cargos importantes foram ocupados pelo dono de uma escola de comportamento canino, um homem que se apresentou como Papai Noel em um shopping, o operador de um esquema de pirâmide e um renomado chefe do crime organizado.

À medida que foram postos de lado e substituídos, os líderes separatistas culparam os militares ucranianos por assassinatos e emboscadas que autoridades em Kiev, capital da Ucrânia, disseram ser assuntos inteiramente internos.

Talvez o assassinato mais notável tenha sido o do presidente da República Popular de Donetsk, Alexander Zakharchenko, que morreu em um atentado a bomba em um restaurante em 2018 que cada lado culpou o outro.

A política dos enclaves é uma mistura de imperialismo russo e nostalgia da União Soviética. Bandeiras de foice e martelo são comumente hasteadas. Em escritórios do governo, funcionários penduram retratos de Stalin e ícones cristãos ortodoxos.

— Quando tudo começou naquela época, tive uma sensação de desconexão com a realidade — disse Maria Paseka, que deixou a República Popular de Luhansk e se mudou para o lado controlado pelo governo em agosto. — O quebra-cabeça não se encaixou. Parecia que todos ao redor ouviram algo que eu não sabia.

Na semana passada, a ordem do novo líder da República Popular de Donetsk, Denis Pushilin, de evacuar centenas de milhares de mulheres e crianças foi vista como um sinal particularmente ameaçador.

Pushilin, que interveio após o assassinato de Zakharchenko, disse que antecipou um ataque ucraniano que mataria civis.

Enquanto milhares de pessoas embarcaram em ônibus e foram evacuadas para a Rússia, algumas aproveitaram a oportunidade para fugir para o Oeste, cruzando para a Ucrânia no único posto de controle operacional: a passarela e um trecho de cerca de um quilômetro e meio de pavimentação, onde um cessar-fogo geralmente é respeitado para permitir a passagem de civis.

Yegorov, que partiu para evitar o alistamento militar, com os olhos verdes semicerrados sob o sol do fim da tarde, disse que morava com o avô, mas agora moraria com a mãe em Kiev. Ele disse que viu o que chamou de política falsa de renascimento comunista da liderança:

— Ninguém que eu conheça quer lutar pela República Popular de Luhansk.