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Crescem as críticas à guerra na Ucrânia nos círculos próximos ao Kremlin, mas domínio de Putin silencia dissenso

Alguns membros da elite temem que a invasão seja um erro catastrófico, mas dizem que o presidente russo não vai ceder e não corre o risco de perder o poder
O presidente da Rússia, Vladiimir Putin, em uma reunião com empresários no Kremlin nesta quarta-feira Foto: MIKHAIL TERESHCHENKO / AFP
O presidente da Rússia, Vladiimir Putin, em uma reunião com empresários no Kremlin nesta quarta-feira Foto: MIKHAIL TERESHCHENKO / AFP

MOSCOU — Quase oito semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia , com perdas militares aumentando e Moscou enfrentando um isolamento internacional sem precedentes, um número pequeno, mas crescente, de pessoas próximas ao Kremlin questiona discretamente a decisão de Vladimir Putin de ir à guerra.

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Os críticos nas posições mais altas do poder da Rússia permanecem poucos, espalhados por cargos de alto nível no governo e empresas estatais. Eles acreditam que a invasão foi um erro catastrófico que terá efeitos negativos sobre o país por anos, segundo dez pessoas com conhecimento direto da situação. Todos falaram sob condição de anonimato, com muito medo de represálias se falassem publicamente.

Até agora, essas pessoas não veem chance de o presidente russo mudar de rumo e nenhuma perspectiva de qualquer ameaça capaz de tirá-lo do poder. Cada vez mais dependente de um círculo restrito de conselheiros linha-dura, Putin rejeitou tentativas de alerta de outras autoridades sobre o custo econômico e político da invasão, disseram.

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Alguns afirmaram que compartilham cada vez mais o medo manifestado por oficiais de inteligência dos EUA, de que Putin possa recorrer a um uso limitado de armas nucleares caso se veja frente a um fracasso em uma campanha que ele considera como sua missão histórica .

Com certeza, o apoio à guerra de Putin permanece profundo em grande parte da elite russa , com muitos de seus membros em público e em privado defendendo a narrativa do Kremlin de que o conflito com o Ocidente era inevitável e que a economia se adaptará às amplas sanções impostas pelos EUA e seus aliados.

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E o apoio público à guerra continua forte, após o choque inicial e a interrupção das sanções darem lugar a uma espécie de estabilidade surreal na Rússia.

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Ainda assim, mais e mais pessoas em cargos de alto nível passaram a acreditar que o compromisso de Putin de continuar a invasão condenará a Rússia a anos de isolamento, e que a tensão elevada deixará sua economia paralisada, sua segurança comprometida e sua influência global destruída.

Alguns magnatas dos negócios fizeram declarações veladas questionando a estratégia do Kremlin, mas muitos atores poderosos estão com muito medo da repressão cada vez maior à dissidência para expressar suas preocupações em público.

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Os céticos da guerra ficaram surpresos com a velocidade e amplitude da resposta dos EUA e seus aliados. Sanções congelaram metade das reservas de US$ 640 bilhões do Banco Central, e empresas estrangeiras abandonaram décadas de investimento e encerraram operações quase da noite para o dia. Há também o apoio militar , em constante expansão, para Kiev, que está ajudando suas forças a conterem o avanço russo.

Autoridades de alto escalão tentaram explicar ao presidente que o impacto econômico das sanções será devastador e apagará as duas décadas de crescimento e padrões de vida mais altos que Putin proporcionou durante seu governo, segundo pessoas familiarizadas com a situação.

Putin ignorou os avisos, dizendo que, embora a Rússia pague um custo enorme, o Ocidente não lhe deixou alternativa senão a guerra, relataram. Publicamente, Putin diz que a “Blitzkrieg econômica��� fracassou e que a economia se adaptará.

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O presidente continua confiante de que o público o apoia, com os russos prontos para suportar anos de sacrifício motivados por sua visão de grandeza nacional, disseram.

Com a ajuda de rígidos controles de capital, o rublo recuperou a maior parte de suas perdas iniciais e, embora a inflação tenha disparado, a ruptura econômica permanece relativamente limitada até agora.

Putin está determinado a prosseguir com a luta, mesmo que o Kremlin tenha tido que reduzir suas ambições de uma rápida e abrangente tomada de grande parte da Ucrânia, para em vez disso se concentrar em uma batalha cansativa pela região do Donbass , no Leste. Conformar-se com ainda menos do que isso deixaria a Rússia irremediavelmente vulnerável e fraca frente à percepção de uma ameaça dos EUA e de seus aliados, de acordo com essa visão.

Nas semanas desde o início da invasão, o círculo de assessores e contatos de Putin se tornou ainda mais limitado, em comparação ao pequeno grupo de conselheiros linha-dura com quem ele se consultavaregularmente antes, segundo duas pessoas.

A decisão de invadir foi tomada por Putin e meia dúzia de ajudantes agressivos, incluindo o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, o chefe do Estado-Maior Geral, Valery Gerasimov, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Rússia, disseram as fontes.

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O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, não respondeu imediatamente a um pedido de comentário para esta matéria. O ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, não deu uma resposta direta às repetidas perguntas sobre a possibilidade de a Rússia usar armas nucleares na Ucrânia em uma entrevista divulgada na terça-feira.

Os críticos não veem nenhum sinal de que Putin ainda esteja pronto para considerar interromper a invasão devido às perdas ou fazer as sérias concessões necessárias para alcançar um cessar-fogo. Dado seu domínio total do sistema político, visões alternativas só são ditas em privado.

A falta de informações contribuiu para o erro de cálculo do Kremlin nos primeiros dias da ofensiva, apostando em um apoio mais amplo entre as tropas e autoridades ucranianas, bem como em avanços militares mais rápidos, disseram as pessoas com conhecimento do assunto. O líder russo também subestimou seu colega ucraniano, inicialmente percebendo-o como fraco.

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Roman Abramovich, o bilionário que ajudou a intermediar as negociações de paz, até agora mal-sucedidas, precisou desiludir Putin de sua convicção de que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky , um ex-ator de comédia, fugiria do país tão logo a invasão começasse, segundo pessoas familiarizadas com as conversas.

Dentro do principal sucessor da KGB, o Serviço Federal de Segurança, a frustração com o fracasso da invasão até agora está crescendo, segundo Andrei Soldatov, especialista em serviços de segurança russos. Outros esperavam que a luta não durasse mais do que algumas semanas, de acordo com pessoas familiarizadas com a situação.

Apenas um alto funcionário até agora rompeu publicamente com o Kremlin por causa da invasão: Anatoly Chubais , o impopular arquiteto das privatizações dos anos 1990 e enviado do Kremlin para assuntos climáticos. Ele deixou o país e Putin o removeu de seu cargo.

Outros que tentaram se demitir — incluindo a chefe do Banco Central, Elvira Nabiullina — foram informados de que tinham que permanecer para ajudar a gerenciar as consequências econômicas, segundo pessoas familiarizadas com a situação. Alguns funcionários do escalão inferior pediram para serem transferidos para empregos não relacionados à formulação de políticas, disseram.

Autoridades de alto escalão denunciaram aqueles que deixaram o país como “traidores”.

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Entre os magnatas dos negócios — incluindo muitos que perderam seus iates, investimentos e outras propriedades confiscadas por causa de sanções —, alguns criticaram a guerra, mas sem mencionar Putin.

O magnata dos metais Oleg Deripaska chamou a guerra de “insanidade” no final de março, dizendo que poderia ter terminado “há três semanas por meio de negociações razoáveis”. Ele alertou que os combates podem continuar por “mais vários anos”.

Alguns membros da elite pressionaram por uma linha ainda mais dura. Depois que o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, defendeu um apresentador de TV proeminente que havia deixado o país nos dias após a invasão, o governante linha-dura da Chechênia e cão de guarda de Putin Ramzan Kadyrov — cujas tropas estão lutando na Ucrânia — o criticou por patriotismo insuficiente.

— Putin construiu seu regime principalmente fomentando o apoio público, e assim obteve os meios para controlar a elite — disse Tatiana Stanovaya, da consultora política R.Politik. — Não há espaço para desacordo ou discussão, todos devem abraçar e implementar as ordens do presidente. E, enquanto Putin mantiver a situação sob controle, as pessoas o seguirão.