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Na guerra na Ucrânia, mentiras e desinformação são armas nos dois lados do front; conheça nove casos

Imagens antigas, heróis fictícios e vídeos de jogos de computador inflam narrativas e servem como ferramentas de propaganda para russos e ucranianos
Tropas russas embarcam em Ilyushin Il-76, no aeroporto de Chkalovsky, nos arredores de Moscou, em janeiro. Forças ucranianas afirmam ter derrubado duas aeronaves do mesmo modelo no mês passado, mas jamais surgiu qualquer imagem dos supostos destroços Foto: AFP
Tropas russas embarcam em Ilyushin Il-76, no aeroporto de Chkalovsky, nos arredores de Moscou, em janeiro. Forças ucranianas afirmam ter derrubado duas aeronaves do mesmo modelo no mês passado, mas jamais surgiu qualquer imagem dos supostos destroços Foto: AFP

No dia 25 de fevereiro, cerca de 24 horas depois do começo da invasão russa da Ucrânia, as redes sociais começaram a reproduzir, de forma até frenética, a informação de que um avião de transporte da Rússia, um Ilyushin Il-76, havia sido derrubado pelos sistemas de defesa aérea ucranianos.

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Logo em seguida, através de um serviço de inteligênca da Ucrânia, surgiram relatos de que um segundo Il-76 fora abatido — as duas aeronaves estariam levando tropas russas para ações diretas contra várias cidades, inclundo a capital, Kiev.

Porém, havia uma lacuna no episódio: jamais foram mostrados destroços das duas aeronaves, tampouco imagens de corpos ou sobreviventes.

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A história dos Ilyushins é um dos muitos exemplos de informações não confirmadas ou incorretas sendo divulgadas, seja por russos, ucranianos ou pessoas que estão a alguns milhares de quilômetros de distância, e que servem de munição para uma face dessa guerra: a disputa pela narrativa do front.

"Estamos vendo uma divulgação não intencional de mentiras, ao lado de operações disfarçadas de influência em torno do conflito na Ucrânia", afirmou, em artigo, Shelby Grossman, do Observatório da Internet da Universidade de Stanford.

Menino crucificado

Cabe ressaltar que essa guerra de versões entre Kiev e Moscou teve início bem antes dos primeiros disparos em fevereiro. Ainda em 2014, quando a Ucrânia vivia os impactos da Euromaidan, com a deposição de Viktor Yanukovych, a anexação da Crimeia pela Rússia e o conflito no Leste do país, surgiram relatos na imprensa russa sobre um menino de três anos que havia sido morto e crucificado em uma praça por forças ucranianas.

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A comoção gerada pelo caso teria influenciado algumas pessoas a se unirem às milícias pró-Moscou contra o Exercito ucraniano, ainda no início da guerra que deixaria, em oito anos, cerca de 15 mil mortos.

Crematórios móveis

Em outra história, essa mas recente, um canal de São Petersburgo afirmou que a missão da Organização para a Cooperação e Segurança da Europa (Osce) havia descoberto um esquema de tráfico de órgãos humanos em Donbass, no Leste ucraniano, e teria até "crematórios móveis" para se livrar dos corpos das vítimas.

Além de terem sido divulgadas com destaque pela mídia russa, as histórias têm algo em comum: ambas são falsas.

— A Ucrânia tem sido alvo de propaganda russa por quatro anos, e agora as notícias falsas estão vindo de todo o mundo — afirmou, em 2018, Olga Yurkova, jornalista e fundadora de um site dedicado a combater a desinformação relacionada à Ucrânia, durante um TED Talk, em Vancouver. — As pessoas não sabem mais o que é real e o que é falso, e muitos pararam de acreditar em qualquer coisa. E isso é ainda mais perigoso.

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Aviões derrubados

No atual conflito, a pouca capacidade de ação dos jornalistas em solo ucraniano, limitada por questões logísticas e de segurança, também contribui para que ações de desinformação se propaguem: por mais aprimoradas que sejam as técnicas de identificação visual, elas são demoradas, e até que comprovem que uma informação está errada, a imagem ou relato já foi acessado e compartilhado por milhões de pessoas.

Foi o caso dos dois Il-76 supostamente derrubados pela Ucrânia: logo depois dos relatos, imagens começaram a surgir do que seriam os destroços de uma das aeronaves. De fato, eram peças de um Il-76, mas de uma aeronave ucraniana derrubada em 2014, perto de Luhansk.

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Menina enfrenta soldado

Outro exemplo foi o vídeo apresentado como sendo de uma menina ucraniana enfrentando um soldado russo, no meio da estrada — as imagens, na realidade, eram da jovem palestina Ahed Tamimi, que discutia com um soldado israelense, em 2012.

— Existe a reformatação de mídias antigas em todas as plataformas. E mesmo no formato do Tik Tok, há muitas ferramentas que permitem a recontextualização de imagens, vídeos e mesmo som — disse, em entrevista à NPR, Joan Donovan, diretora de pesquisa do Centro Shorenstein sobre Mídia, Política e Políticas Públicas, da Universidade Harvard. — E vemos que há muitas pessoas apenas buscando cliques, likes e compartilhamentos.

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Fantasma de Kiev

Um caso famoso, e que chegou a ser tratado como verdadeiro, foi o do chamado "Fantasma de Kiev", um piiloto ucraniano que, a bordo de seu MiG-29, teria derrubado cerca de seis aeronaves russas. A história foi compartilhada pelo ex-presidente e hoje deputado da Rada, Petro Poroshenko, e até fotos dele foram publicadas em redes sociais. Mas uma análise das imagens mostrou que praticamente todas foram alteradas ou tiradas de contexto — um vídeo mostrando uma suposta batalha aérea não passava de um trecho do jogo Digital Combat Simulator World.

Tanque russo atropela carro

Ainda em fevereiro, um vídeo do que seria um tanque russo passando por cima de um carro em Obolon, na região de Kiev, ganhou páginas de veículos de imprensa ao redor do mundo e renderam milhares de cliques. Mas, na realidade, não era um tanque, mas sim um veículo de transporte do sistema antiaéreo Strela-10, usado pelos ucranianos. O desvio na rota teria sido provocado pelo intenso tiroteio na área.

Ataque a memorial do Holocausto

O ataque à torre de TV de Kiev, no dia 1º de março, recebeu condenações em Israel porque teria causado danos ao memorial às vítimas do massacre de mais de 30 mil judeus em Babi Yar, na Segunda Guerra Mundial. Contudo, um jornalista israelense foi ao local e disse que o memorial estava intacto — os administradores do local, por sua vez, dizem que um cemitério judaico que também fica no complexo sofreu danos. O incidente foi usado pelo presidente Volodymyr Zelensky para atacar a ofensiva russa contra a capital.

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Acidente nuclear iminente

Na semana passada, durante o ataque à central nuclear de Zaporíjia , integrantes do governo ucraniano, incluindo Zelensky afirmaram que uma eventual explosão poderia significar um acidente algumas vezes pior do que o de Chernobyl, em 1986, mas especialistas rapidamente rejeitaram tal ideia. Representantes da usina repetidamente afirmaram que havia danos sérios em áreas próximas aos reatores, mesmo depois da Agência Internacional de Energia Atômica declarar que não havia riscos. A própria Rússia, em sua parcela de culpa na desinformação, afirmou que já estava no controle do local desde o dia 28 de fevereiro, sem apresentar provas.

Nazistas no comando

Por fim, aquela que talvez seja a maior das desinformações do conflito: a ideia de que a Ucrânia é comandada por nazistas , propagada pelo presidente Vladimir Putin e integrantes do alto escalão do governo. Apesar da Ucrânia ter um problema sério com grupos de extrema direita e neonazistas, algo que também ocorre na Rússia, não há evidências de que as atuais autoridades em Kiev sejam simpatizantes do nazismo — o presidente Zelensky, inclusive, é judeu.