Mundo Guerra na Ucrânia

Histórias dos que escaparam de Mariupol: 'Não sobrou nada. Tudo virou pó'

Adultos e jovens em fuga de cidade bombardeada na Ucrânia contam como tiveram que deixar tudo para trás, incluindo avós octogenários
Refugiados descansam em uma rua ao deixar a cidade de Mariupol Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS
Refugiados descansam em uma rua ao deixar a cidade de Mariupol Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS

ZAPORÍJIA, Ucrânia — Sergei Zozulya pediu aos médicos que tentassem salvar sua mão, dando a ela "uma chance". Deitado numa maca no hospital regional de Mariupol, sem água, sem aquecimento, com as janelas sem vidro cobertas apenas por folhas de madeira e papelão, Zozulya fechou os olhos e, com o estômago afundando, tentou não olhar. As medicações eram escassas ali, e o efeito da anestesia geral havia passado, disseram os paramédicos. Seu braço e parte de seu torso adormeceram "com alguma coisa", diz ele. E os médicos o costuraram da melhor maneira que puderam.

Horas antes, quando tentava aquecer uma panela de sopa sobre uma fogueira no pátio de seu prédio, onde os vizinhos cozinhavam como podiam, Zozulya  sentiu um golpe muito forte no braço e uma explosão.

— Caí no chão e vi que minha mão não era mais mão — diz em voz baixa e tom calmo.

Depois da explosão, corridas, torniquete e hospital. Lá, deitado na sala de cirurgia — uma para vários pacientes para economizar a eletricidade do gerador que permite que o centro continue funcionando em uma cidade transformada em escombros e sem suprimentos básicos —, ele viu uma mulher grávida com um pé amputado sendo carregada com uma ferida aberta na barriga.

— Não havia mais bebê. As enfermeiras comentaram que aviões russos bombardearam dois hospitais. Um, a maternidade de Mariupol, no dia 9 de março — diz Sergei.

É o 24º dia da guerra do presidente russo, Vladimir Putin, contra a Ucrânia e a família Zozulya não tem mais casa. Sergei nem sabe se vai conseguir manter a mão. Seu braço direito está em uma tipoia com um curativo apertado que já viu dias melhores e precisa urgentemente de uma lavagem. Mas o homem de 47 anos, sua mulher, Oksana, e seus dois filhos estão vivos e escaparam do horror. Eles fugiram de Mariupol, uma cidade transformada em ruínas fumegantes.

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Eles não sabem quanto tempo a guerra vai durar, mas pela primeira vez em semanas eles puderam esticar as pernas ao ar livre por mais de cinco minutos sem ter que correr para se amontoar no porão por causa do bombardeio. Mesmo que seja no estacionamento de um centro comercial indefinido em Zaporíjia, cidade ainda não muito atacada, transformado em abrigo para atender os deslocados pela invasão russa.

São ucranianos vindos especialmente de Mariupol, de onde se estima que pouco menos de 40 mil pessoas escaparam, segundo as autoridades. Pessoas que perderam quase tudo. Como eles, que até há um mês pensavam no horizonte das férias, dos passeios em família na praia. De mais um dia de trabalho para Sergei, que aluga bangalôs no Mar de Azov. Zozulya demonstra carinho pela pequena Nikita, uma menina loura e de bochechas gordinhas de um 1 ano e 8 meses, ou orgulho pelas boas notas de Igor, de 13 anos, que anda como uma fera solta pelo recinto.

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Os Zozulyas levaram quase um dia para chegar ao que ainda parece um porto seguro, apesar de ataques ocasionais. Eles chegaram de carro, com Sergei ao volante, trocando as marchas o melhor que podia com uma mão, a esquerda. Eles deixaram Mariupol na sexta-feira, quando um bombardeio atingiu seu prédio, derrubou o terceiro e quarto andares e as chamas começaram a devorar o resto.

— Nós estávamos morando no porão com nossos vizinhos por semanas porque os bombardeios e tiros eram constantes —  conta Oksana, que  suspira enquanto tenta tranquilizar Nikita, que chora enquanto olha ao redor —  Escreva que os aviões russos estão bombardeando a cidade sem rumo. Mísseis e foguetes caem em qualquer lugar. Até no berçário — diz Oksana, que usa dois ou três suéteres e um casaco, mas, mesmo assim, parece pequena e frágil. — Agora os russos já estão na cidade e estão tentando destruí-la. Não há remédio. Apenas ir embora —  diz a mulher de 43 anos encolhendo os ombros.

Refugiados caminham ao longo de uma rua enquanto deixam a cidade de Mariupol Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS
Refugiados caminham ao longo de uma rua enquanto deixam a cidade de Mariupol Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS

Após semanas de intensos combates, a Ucrânia perdeu o controle do Mar de Azov. As tropas do Kremlin tomaram o porto de Mariupol, o principal dessas águas, e já entraram na cidade estratégica. Com pouco mais de 400 mil habitantes, a cidade portuária é uma das peças-chave das aspirações de Putin.

Seu controle permitiria a Moscou uma melhor logística de suprimentos e reforços para as unidades do Exército russo que estão mais a oeste e facilitaria uma operação para fazer uma pinça para cercar as forças ucranianas ao redor da região de Donbass. Mas, acima de tudo, abriria caminho para completar um corredor da península da Crimeia, na Ucrânia, que Moscou anexou ilegalmente em 2014, aos territórios de Donetsk e Luhansk, controlados pelo Kremlin por meio dos separatistas pró-Rússia, que ele apoia há oito anos e que são a base do argumento para o que Putin chamou de operação especial para "desnazificar" a Ucrânia e proteger a população russa  de Donbass, a região à qual pertence a sitiada Mariupol.

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Russos contra o Azov

Mariupol é uma cidade simbólica para o Kremlin também porque sua conquista significaria a derrota do batalhão ultranacionalista Azov, agora parte da Guarda Nacional ucraniana, em sua própria base, seu quartel-general, diz Alexei, um programador de 27 anos, que acaba de chegar ao abrigo com sua esposa, sua sogra e seu filho de 4  anos em Zaporíjia.

—As batalhas são brutais dentro da cidade. Os russos disparam e os Azov respondem. De qualquer lugar. De dentro da cidade, de apartamentos, de prédios de apartamentos. E nós no meio de tudo. Há fogo de artilharia e bombardeios a cada meia hora. Você dorme com bombas e acorda com bombas. Um som que penetra até a medula. Como o medo — conta Alexei.

Alexei, um jovem de grandes olhos amendoados e olhar tímido, narra ponto por ponto seu inferno. Quase minuto a minuto. Com uma precisão cronológica perturbadora. Desde o dia em que Putin lançou a invasão e ele tinha uma entrevista de emprego que nunca aconteceu. Quando uma bomba destruiu o apartamento de sua sogra, Viktoria. Quando perdeu o contato com amigos com um carro que deveria pegar ele e Tatiana, de 26 anos. Quando eles colocaram todas as suas coisas em algumas malas e saíram do apartamento para nunca mais voltar. Primeiro, no veículo de alguns conhecidos. Então pegando carona. Quando lavaram o rosto e as mãos, depois de três semanas.

— Deixamos tudo para trás. Todas as nossas memórias. As fotografias. Não sobrou nada de Mariupol. Tudo virou pó  — lamenta.

Nos 24 dias de invasão, ele forjou novas memórias com muitas lembranças e grandes pesadelos.

Danilo Yevmanchuk e Valeria Moscovtsova fugiram do inferno a pé. Eles colocaram o que puderam em três malas e começaram a correr. Eles estavam sem água, sem eletricidade e sem aquecimento havia 22 dias. Caminharam mais de cinco quilômetros de um abrigo em Mariupol até que um carro com outras pessoas em fuga os parou. Sete lotaram o veículo para uma cidade próxima e de lá pegaram carona para outro ponto. Passando por postos de controle russos nos quais os soldados de Putin checavam seus celulares em busca de algum tipo de pista, e revistavam pescoço, braços, ombros, joelhos, procurando tatuagens do "tipo nacionalista", diz Danilo. Depois, outro carro. Outra ajuda. E mais um. Chegaram ao indescritível centro comercial de Zaporíjia, onde móveis de jardim bucólicos, ainda com preços, e os anúncios de ofertas de iogurtes e colchas contrastam com os rostos cansados e angustiados de dezenas de pessoas que tentam agora decidir o que fazer com o que resta de sua vidas.

O cerco é como um cinturão cada vez mais largo e apertado. Uma corda que estrangula. Ou como uma cobra ondulando para tentar pegar sua presa. E Danilo e Valéria, de 25 e 23 anos, respectivamente, estão fugindo daquela cobra há semanas. Primeiro, um projétil atingiu o prédio e eles se mudaram para o porão. Mais tarde, preocupados com os avós, que mal podiam sair para pegar água e esquentar comida, eles se mudaram para o apartamento deles.

— Ali ainda vivíamos como gente normal, como gente, dormíamos com colchões no chão, até de pijama. Então tudo virou um inferno. Aviões começaram a sobrevoar nossa área. Para atirar. E tivemos que descer para o porão. Estamos há dez dias. São dez dias bebendo neve e suco —  conta Valéria.

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Danilo diz que eles foram embora deixando a família para trás. Avós, octogenários, não tinham escolha.

—  Quase não havia água. Eles sabiam que, se ficássemos, provavelmente todos morreríamos —  lamenta a jovem, que usa um cômico chapéu rosa com orelhas de urso no cabelo castanho.

Valéria deseja que tudo o que ela disse sobre Mariupol fosse mentira: que derretaram neve para poder beber; que cozinhavam, até que os bombardeios se tornassem contínuos, em fogueiras na rua; que não há comida, nem remédio; que, além dos moradores que quebravam as vitrines de supermercados e farmácias para levar o que precisavam para sobreviver, havia saqueadores que levavam televisores, mesmo em uma cidade sem eletricidade. Que os cadáveres, na melhor das hipóteses, estão enterrados em covas, ou em parques e jardins, e outros não recolhidos nas ruas:

—O cemitério principal fica fora de Mariupol e é impossível chegar lá por causa do bombardeio. Mas mesmo podendo: quem gastaria combustível que está escasso para poder chegar lá?  Se fosse meu corpo, não gostaria que outra pessoa se arriscasse. Assim é a guerra.