Crítica
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Por Patrícia Kogut

Nada de plot twists, de frio na barriga ou de efeitos especiais impressionantes. “Somebody somewhere” (alguém em algum lugar) oferece vidas banais, no monótono interior do Kansas. Os personagens ligam o carro, tomam sorvete, cantam no coral da igreja, comem salgadinhos gordurosos, vão ao supermercado e suam bastante. O espectador quase “ouve” o zumbido das moscas daquele lugar sem graça. Com tudo isso, a série da HBO Max é um pequeno tesouro. Há duas temporadas disponíveis no serviço. Cada uma tem sete episódios de pouco mais de 20 minutos. E a terceira acaba de ser anunciada. Recomendo vivamente.

A trama é semibiográfica. A protagonista está a cargo de Bridget Everett. Na vida real, ela é comediante, atriz, cantora, escritora e artista de cabaré. Na ficção, vive Sam, que, depois de um período longe, voltou para a cidade natal para cuidar da irmã doente. Quando o enredo começa, ela já está de luto há alguns meses. Segue dormindo no sofá da sala, sem coragem de ocupar o quarto que foi de Holly antes de ser vencida pelo câncer. Atravessa uma crise de meia-idade, é vista pelos amigos de infância, pela mãe, pela outra irmã e pelo cunhado como uma perdedora por não ter se casado nem tido filhos. Nota os primeiros sintomas da menopausa. Trabalha corrigindo trabalhos escolares de ensino fundamental.

A dificuldade em se transferir da sala para a cama no quarto reflete todo o sentimento de inadaptação e de fracasso que cerca Sam.

Nesse emprego que detesta, contudo, ela reencontra Joel (Jeff Hiller), um antigo colega de escola de quem mal se recordava. Ele, ao contrário, lembra-se bem dela: era grande admirador de sua voz no coral.

Como Sam, Joel vive à margem. Os dois se tornam inseparáveis. Ele apresenta a ela amigos LGBTQIAPN+ que a acolhem como família. São adultos, mas não parece. A uma certa altura, ela se dá conta de que já não tem como imaginar uma vida toda no futuro como se fosse uma adolescente, porque o tempo passou.

O enredo é ambientado no Kansas. No entanto, as gravações aconteceram num subúrbio de Chicago. A justificativa dos produtores foi o “pool de talentos disponível na cidade”. Pode até ser, mas o público mais observador perceberá outra razão: o orçamento da série deve ter sido bem limitado. Seus reais valores se concentram no roteiro e nas interpretações. Não que precisasse de mais. O maior desafio das produções low budget é que faltam artifícios para disfarçar as eventuais falhas. É preciso garantir a qualidade daquilo que realmente sustenta uma história. Refiro-me à dramaturgia e às interpretações. E isso “Somebody somewhere” tem de sobra.

A trama avança, mas é, sobretudo, um jogo parado. Há humor, porém, a melancolia domina tudo. Trata-se de um programa arrebatador, para saborear nos detalhes, apreciando a carpintaria dos personagens.

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