Nada de plot twists, de frio na barriga ou de efeitos especiais impressionantes. “Somebody somewhere” (alguém em algum lugar) oferece vidas banais, no monótono interior do Kansas. Os personagens ligam o carro, tomam sorvete, cantam no coral da igreja, comem salgadinhos gordurosos, vão ao supermercado e suam bastante. O espectador quase “ouve” o zumbido das moscas daquele lugar sem graça. Com tudo isso, a série da HBO Max é um pequeno tesouro. Há duas temporadas disponíveis no serviço. Cada uma tem sete episódios de pouco mais de 20 minutos. E a terceira acaba de ser anunciada. Recomendo vivamente.
A trama é semibiográfica. A protagonista está a cargo de Bridget Everett. Na vida real, ela é comediante, atriz, cantora, escritora e artista de cabaré. Na ficção, vive Sam, que, depois de um período longe, voltou para a cidade natal para cuidar da irmã doente. Quando o enredo começa, ela já está de luto há alguns meses. Segue dormindo no sofá da sala, sem coragem de ocupar o quarto que foi de Holly antes de ser vencida pelo câncer. Atravessa uma crise de meia-idade, é vista pelos amigos de infância, pela mãe, pela outra irmã e pelo cunhado como uma perdedora por não ter se casado nem tido filhos. Nota os primeiros sintomas da menopausa. Trabalha corrigindo trabalhos escolares de ensino fundamental.
A dificuldade em se transferir da sala para a cama no quarto reflete todo o sentimento de inadaptação e de fracasso que cerca Sam.
Nesse emprego que detesta, contudo, ela reencontra Joel (Jeff Hiller), um antigo colega de escola de quem mal se recordava. Ele, ao contrário, lembra-se bem dela: era grande admirador de sua voz no coral.
Como Sam, Joel vive à margem. Os dois se tornam inseparáveis. Ele apresenta a ela amigos LGBTQIAPN+ que a acolhem como família. São adultos, mas não parece. A uma certa altura, ela se dá conta de que já não tem como imaginar uma vida toda no futuro como se fosse uma adolescente, porque o tempo passou.
O enredo é ambientado no Kansas. No entanto, as gravações aconteceram num subúrbio de Chicago. A justificativa dos produtores foi o “pool de talentos disponível na cidade”. Pode até ser, mas o público mais observador perceberá outra razão: o orçamento da série deve ter sido bem limitado. Seus reais valores se concentram no roteiro e nas interpretações. Não que precisasse de mais. O maior desafio das produções low budget é que faltam artifícios para disfarçar as eventuais falhas. É preciso garantir a qualidade daquilo que realmente sustenta uma história. Refiro-me à dramaturgia e às interpretações. E isso “Somebody somewhere” tem de sobra.
A trama avança, mas é, sobretudo, um jogo parado. Há humor, porém, a melancolia domina tudo. Trata-se de um programa arrebatador, para saborear nos detalhes, apreciando a carpintaria dos personagens.