Patrícia Kogut
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O primeiro episódio de “O jogo que mudou a História” começa nos anos 1970, com o deslocamento de um grupo de presidiários para a Ilha Grande. Chegando lá, eles atravessam um corolário impressionante de situações indigestas. Vemos um estupro coletivo, uma rebelião, assassinatos, uma castração, uma decapitação e muitas surras. Talvez eu tenha esquecido algo, mas as passagens mencionadas acima já são bem ilustrativas do que vem em seguida. A série do Globoplay (parceria com a AfroReggae) criada por José Júnior e dirigida por Heitor Dhalia não é para os fracos.

A produção é ambiciosa. Ela narra acontecimentos-chave para que se possa compreender a formação e a evolução do crime organizado no Rio. Para isso, retrata um período, em plena ditadura militar, em que aquela cadeia (demo- lida em 1994) misturava presos políticos e comuns.

O embaralhamento do discurso ideológico com os códigos do crime está em cada diálogo. Assim, Otávio Müller faz uma participação como Seu Hélio, um preso político em greve de fome contra os maus-tratos dispensados a Mestre (Bukassa Kabengele), um preso comum. Seu Hélio dá lições de empatia, escuta música erudita no radinho de pilha e explica “o que há por trás” da letra de uma canção do combativo Taiguara. É didático, mas isso não chega a comprometer o bom resultado.

O mergulho no realismo é profundo. “O jogo que mudou a História” tem grandes atores profissionais. E também um elenco escalado entre egressos do sistema prisional, sem experiência diante das câmeras. A escolha das locações segue o mesmo critério. Os presídios da Frei Caneca e Bangu 1 estão na tela e sua inospitalidade é de verdade. Tudo isso confere à produção uma legitimidade que faz a diferença. Há algumas derrapadas, mas quase todas perdoáveis. Entre elas estão as gírias modernas (“tá ligado” ou “treta”) invadindo os diálogos dos anos 1970.

No geral, o suor é compensado. Essa ambição toda, no entanto, também deriva numa grandiloquência artificial. E a série cai em certas armadilhas. Não dá, por exemplo, para filmar um banho de sangue sendo ao mesmo tempo muito sutil. Aliás, não dá para ser sutil contando uma história tão violenta e fazendo escolhas realistas. Só que esse esforço inútil existe aqui. Ele se manifesta, por exemplo, quando a câmera mostra alguns pingos, para logo depois abrir num esfaqueamento explícito, com gritos, praguejamentos e palavrões.

O elenco é numeroso e cheio de talentos, e a reconstituição de época, minuciosa, merece todos os elogios. Destaco algumas atuações especialmente comoventes nos primeiros episódios. Além de Otávio e Bukassa, Ravel Andrade, Pedro Wagner, Jonathan Azevedo, Alli Willow e Raphael Logam enchem a tela.

“O jogo que mudou a História” esclarece um passado que vai interessar ao espectador. E faz isso com seriedade. Merece a sua atenção.

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