Análise: Coroação de Charles III uniu pompa, sobriedade e acenos aos novos desafios da monarquia

Para Charles, que tem entre seus desafios encarnar a união, a desarmonia no próprio lar é um perigo – e ela promete render muitos capítulos pelas próximas temporadas deste seriado que já dura um milênio

Por Bruno Astuto


Rei Charles III durante cerimônia de coroação na Abadia de Westminster, em Londres Gareth Cattermole / POOL / AFP

“O abuso da grandeza é quando ela separa o remorso do poder”, disse Brutus em “Júlio César”, de William Shakespeare. A cerimônia de coroação do rei Charles III, o 40º monarca entronizado na Abadia de Westminster, foi sóbria, apesar dos cetros, diamantes, túnicas de ouro e coroas. Atento aos sinais da sociedade, ele sabe que o ambiente em torno do ritual é bem diferente daquele de 70 anos atrás, quando sua mãe, Elizabeth II, foi ungida. Naquele tempo, a Inglaterra deixava as privações da guerra, e a coroação serviu como uma mensagem de resistência, vitória e união, sem contar que o país precisava se afirmar ainda como uma potência, diante das evidentes perdas coloniais.

Desta vez, há a crise inflacionária e de custo de vida que castiga uma audiência digital e multiplataformas menos dispostas a arcar com os custos milionários da festa e a aceitar a falta de transparência nas finanças reais. Várias ex-colônias (Austrália e Jamaica à frente) que ainda têm o rei como chefe de Estado ameaçam se tornar repúblicas. Há uma guerra na Europa, evocada no tapete da abadia — “uma feliz coincidência”, segundo um porta-voz do palácio — e no figurino azul da primeira-dama dos Estados Unidos, Jill Biden, que fazia conjunto com a filha, de amarelo, formando as cores da bandeira da Ucrânia. Por fim, a maioria dos jovens súditos (o famoso futuro) se declara indiferente à família real.

Charles tentou fazer sua parte e não separou o remorso do poder: acenou à filantropia, cortando cortesões da lista de 2.300 convidados para incluir representantes de instituições de caridade; escalou líderes de diferentes religiões para atuar numa cerimônia eminentemente anglicana; e atraiu a nobreza da vida real para aqueles bancos históricos, acenando para a multiculturalidade e as diferentes realidades de seus domínios.

Houve outros recados importantes, no âmbito doméstico. O irmão escandaloso Andrew não apareceu na sacada do Palácio de Buckingham e chegou a ver vaiado por algumas pessoas da multidão, e o filho rebelde e linguarudo, Harry, foi relegado a sentar-se na fila C do desfile. Não por ter debandado do sistema no qual nasceu, mas por ter publicado suas memórias bombásticas e rompido a omertà silenciosa a que se obrigam todos os membros de realezas, sobretudo da inglesa: “never complain, never explain” (nunca reclame, nunca explique).

Famosos na coroação do rei Charles II

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Katy Perry e Lionel Riche estiveram no evento

Visivelmente desconfortável durante a cerimônia, como um parente que solta umas verdades no almoço de família, ele saiu correndo e sorridente rumo ao aeroporto, sob a desculpa de não poder faltar ao icônico aniversário de 4 anos do filho mais velho, Archie, na Califórnia, onde o aguardava a mulher, Meghan, que recusou o convite real. Para um monarca como Charles, que tem entre seus desafios encarnar a união, a desarmonia no próprio lar é um perigo – e ela promete render muitos capítulos pelas próximas temporadas deste seriado que já dura um milênio.

A segunda mensagem é a continuidade da dinastia. As crianças de William e Kate não ficaram de fora e acabaram roubando a cena, cumprindo o papel de despertar simpatia em corações não tão mais apaixonados pela monarquia. Quando for rei, daqui a talvez uns 50, 60 anos, George, hoje com 9, mostrará as imagens em que ajudava a carregar o manto do avô. Charlotte, a compenetrada e disciplinada, segurava a mão do irrequieto e adorável Louis, enquanto exibia uma tiara como a da mãe, que por sua vez estava altiva, aristocrática, glamorosa.

As mulheres protagonistas da família usaram vestidos brancos e com bordados carregados de símbolos britânicos, afinal trata-se de um casamento com a Nação. Veio, aliás, da futura rainha o único aceno pelo qual os saudosos fãs da inesquecível Princesa Diana tanto ansiavam: ela usou um conjunto de brincos de pérolas e diamantes que pertenceu à sogra. Durante a cerimônia, a hasthag #Diana chegou a ficar em terceiro lugar nos trending topics do Twitter na Europa, à frente da coroação em si.

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As redes sociais são, definitivamente, muito particulares. Aparentemente povoada por baluartes do antipreconceito e do feminismo, viram-se inundadas por comentários misóginos e etaristas a respeito da rainha Camilla, de 75 anos. Eles iam desde críticas às suas rugas (na era do botox e dos filtros, envelhecer ainda parece ser um crime) a apelidos irreproduzíveis sobre o fato de ela ter sido amante de Charles, ainda que estejam casados há 18 anos.

No entanto, ao exigir que o protocolo a coroasse rainha, e não rainha-consorte como determinou sua mãe, o rei confirmou aquilo por que lutou a vida inteira: Camilla é inegociável. Primeiramente não obteve sucesso, face à resistência dos parentes, e teve de se casar com quem não queria, mas ele agora saboreia essa vitória pessoal em meio à parafernália institucional. Ironicamente, Camilla elegeu para si a coroa que foi criada em 1911 para a rainha Mary, que em 1936 juntou-se ao grupo que forçou seu filho, o rei Eduardo VIII, a abdicar do trono por causa da insistência em se casar com uma mulher divorciada. No Brasil, a trilha sonora oficiosa da coroação não foi o hino criado especialmente pelo compositor e produtor teatral britânico Andrew Lloyd Weber para o evento, mas a música “Amante não tem lar”, de Marília Mendonça, reproduzida infinitamente no Instagram e no Tik Tok com o vídeo da coroação de Camilla. “Amante não só tem lar, como também tem coroa”, lia-se em vários comentários.

Houve a belíssima apresentação da soprano sul-africana Pretty Yend, desfile de 19 bandas e 4.000 militares, Lula e Janja, membros de outras famílias reais, estrelas como Katy Perry, Emma Thompson e Lionel Richie, e alguns protestos de ativistas segurando cartazes “Não é meu rei” ou “Parem o petróleo” (52 pessoas foram presas, segundo a polícia). A chuva, tão inglesa quanto os rituais do dia, fez sua costumeira aparição, como nas últimas quatro coroações. Naquelas terras, nada de mau presságio: o reinado de Elizabeth II, que também começou com um aguaceiro, durou 70 anos.

Os reis estavam compenetrados, engajados e, a seu modo, emocionados. Talvez excessivamente preocupados com o peso de suas coroas, que, ao menor gesto errado da cabeça, poderiam cair ou quebrar um pescoço, como contou certa vez a falecida rainha. Nessa festa máxima da expressão cultural inglesa, tão progressista quanto tradicional, fica mesmo impossível não voltar a Shakespeare, que colocou na boca do rei Henrique IV, na peça homônima, o seguinte aforismo: “Inquieta está a cabeça de quem usa uma coroa”.

Deus salve o rei, e agora este começa oficialmente seu trabalho para ser salvo.

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