Alguns jatos da Boeing e da Airbus fabricados recentemente têm componentes feitos de titânio que foram vendidos com documentação falsa para comprovar a autenticidade do material, de acordo com um fornecedor dos fabricantes de aviões, o que levanta preocupações sobre a integridade estrutural desses aviões.
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Os documentos falsificados estão sendo investigados pela Spirit AeroSystems, que fornece fuselagens para a Boeing e asas para a Airbus, bem como pela Administração Federal de Aviação (FAA na sigla em inglês). A investigação ocorre depois que um fornecedor de peças encontrou pequenos furos no material devido à corrosão.
Em um comunicado, a FAA, agência que regula todos os aspectos da aviação civil nos Estados Unidos, disse que estava investigando o escopo do problema e tentando determinar as implicações de segurança de curto e longo prazo para os aviões que foram fabricados com as peças. Não se sabe ao certo quantos aviões têm peças fabricadas com o material questionável.
"A Boeing relatou uma revelação voluntária à FAA sobre a aquisição de material por meio de um distribuidor que pode ter falsificado ou fornecido registros incorretos", disse o comunicado. "A Boeing emitiu um boletim descrevendo as maneiras pelas quais os fornecedores devem permanecer alertas quanto ao potencial de registros falsificados".
Série de problemas de segurança
A revelação ocorre em um momento de intenso escrutínio da Boeing e do setor de aviação em geral, que está sofrendo com uma série de contratempos e problemas de segurança. Em janeiro, um painel da fuselagem explodiu em um jato Boeing 737 Max 9 da Alaska Airlines em pleno voo, o que levou a várias investigações federais.
Em abril, a Boeing informou à FAA sobre um episódio separado envolvendo registros de inspeção potencialmente falsificados relacionados às asas dos aviões 787 Dreamliner. A Boeing informou ainda que poderia ter pulado as inspeções necessárias envolvendo as asas do jato e que precisaria reinspecionar alguns dos Dreamliners ainda em produção.
Em 30 de maio, a Boeing apresentou um plano à Administração Federal de Aviação descrevendo as melhorias de segurança que planejava fazer e comprometeu-se a realizar reuniões semanais com a agência reguladora. Dave Calhoun, executivo-chefe da Boeing, deverá depor na próxima terça-feira perante um painel do Senado sobre os problemas de segurança da empresa.
O uso de titânio potencialmente falso, que não havia sido relatado anteriormente, ameaça estender os problemas do setor para além da Boeing e para a Airbus, sua concorrente europeia. Os aviões que incluíam componentes feitos com o material foram construídos entre 2019 e 2023, entre eles alguns aviões Boeing 737 Max e 787 Dreamliner, bem como jatos Airbus A220, de acordo com três fontes familiarizadas com o assunto, que falaram sob condição de anonimato. Não está claro quantos desses aviões estão em serviço ou quais companhias aéreas os possuem.
A Spirit AeroSystems está tentando determinar a procedência do titânio, se ele atende aos padrões adequados, apesar da documentação falsa, e se as peças feitas com o material são estruturalmente sólidas o suficiente para aguentar a vida útil projetada dos jatos, disseram representantes da empresa. Além disso, a Spirit informou que estava tentando determinar a maneira mais eficiente de remover e substituir as peças afetadas, caso isso fosse necessário.
— Trata-se de documentos que foram falsificados, forjados e pirateados. Assim que percebemos que o titânio falsificado entrou na cadeia de suprimentos, imediatamente confinamos todas as peças suspeitas para determinar o escopo dos problemas — disse Joe Buccino, porta-voz da Spirit.
O titânio em questão tem sido usado em uma variedade de peças de aeronaves, de acordo com os funcionários da Spirit. No caso do 787 Dreamliner, isso inclui a porta de entrada de passageiros, portas de carga e um componente que conecta os motores à estrutura do avião. Para o 737 Max e o A220, as peças afetadas incluem um escudo térmico que protege um componente, que conecta o motor do jato à estrutura, em caso de calor extremo.
Testes não mostram sinais de problemas, dizem empresas
A Boeing e a Airbus disseram que os testes dos materiais afetados até o momento não mostraram sinais de problemas. A Boeing acrescentou que comprou diretamente a maior parte do titânio usado na produção de seus aviões, de modo que a maior parte de seu suprimento não foi afetada.
"Esse problema em todo o setor afeta algumas remessas de titânio recebidas por um conjunto limitado de fornecedores, e os testes realizados até o momento indicaram que a liga de titânio correta foi usada", disse a Boeing em um comunicado. "Para garantir a conformidade, estamos removendo todas as peças afetadas dos aviões antes da entrega. Nossa análise mostra que a frota em serviço pode continuar a voar com segurança."
Da mesma forma, a Airbus afirmou que "a aeronavegabilidade do A220 permanece intacta".
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"Numerosos testes foram realizados em peças provenientes da mesma fonte de suprimento", disse uma porta-voz da Airbus em um comunicado, acrescentando: "A segurança e a qualidade de nossas aeronaves são nossas prioridades mais importantes, e estamos trabalhando em estreita colaboração com nosso fornecedor".
A Agência de Segurança da Aviação da União Europeia não respondeu a um pedido de comentário.
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A Spirit sofreu com problemas de qualidade e financeiros nos últimos anos, e passou por um novo exame minucioso este ano após o episódio de janeiro envolvendo o painel da porta do 737 Max, cuja fuselagem é fabricada pela empresa.
Empresas de quatro países estariam envolvidas
O problema ilustra a complexa cadeia de suprimentos global usada na produção de jatos modernos, e a história do que parece ter dado errado envolve empresas na China, Itália, Turquia e Estados Unidos.
O problema parece remontar a 2019, quando um produtor de materiais turco, a Turkish Aerospace Industries, comprou um lote de titânio de um fornecedor na China, de acordo com fontes familiarizadas com o problema. A empresa turca então vendeu esse titânio para várias empresas que fabricam peças de aeronaves, e essas peças chegaram à Spirit, que as utilizou em aviões da Boeing e da Airbus.
Em dezembro do ano passado, uma empresa italiana que comprou o titânio da Turkish Aerospace Industries notou que o material parecia diferente do que a empresa normalmente recebia. A empresa, Titanium International Group, também descobriu que os certificados que acompanhavam o titânio pareciam não ser autênticos.
Contatada pelo repórter, a Turkish Aerospace Industries não respondeu a um pedido de comentário.
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A Spirit começou a investigar o assunto, e a empresa notificou a Boeing e a Airbus em janeiro de que não poderia verificar a origem do titânio usado para fabricar determinadas peças. O Titanium International Group disse à Spirit que, quando comprou o material em 2019, não tinha ideia de que a papelada havia sido forjada, de acordo com funcionários da Spirit.
Francesca Conti, gerente geral do Titanium International Group, disse que o episódio estava sendo investigado e que ela não poderia fornecer mais detalhes.
"Estamos cooperando com as autoridades relevantes para resolver qualquer problema eventualmente identificado", disse ela em um e-mail.
Os documentos em questão são conhecidos como certificados de conformidade. Eles funcionam como uma certidão de nascimento do titânio, detalhando sua qualidade, como foi feito e de onde veio, disseram as autoridades da Spirit.
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Pessoas familiarizadas com a situação disseram que parece que um funcionário da empresa chinesa que vendeu o titânio falsificou os detalhes dos certificados, escrevendo que o material veio de outra empresa chinesa, a Baoji Titanium Industry, uma empresa que frequentemente fornece titânio verificado. Posteriormente, a Baoji Titanium confirmou que não havia fornecido o titânio. Assim, a origem do titânio ainda não está clara.
"A Baoji Titanium não conhece a empresa e não tem negócios com essa empresa", disse a empresa em um comunicado ao The New York Times.
Afinal, qual a origem do titânio?
Sem saber de onde veio o material ou como ele foi manuseado, é impossível verificar a aeronavegabilidade das peças, disse Gregg Brown, vice-presidente sênior de qualidade global da Spirit.
— Nosso processo de gerenciamento de qualidade se baseia na rastreabilidade das matérias-primas desde as fábricas — disse Brown. — Houve uma perda de rastreabilidade nesse processo e um desafio de documentação.
Os funcionários da Spirit disseram que começaram a testar as peças de titânio para garantir que o material de grau aeronáutico fosse usado. A empresa está testando componentes que ainda estão em estoque e que estão em fuselagens não entregues.
Até o momento, os testes da Spirit confirmaram que o titânio é de grau apropriado para os fabricantes de aviões. Mas a empresa não conseguiu confirmar se o titânio foi tratado por meio do processo aprovado de fabricação de aviões. O material foi aprovado em alguns dos testes de materiais realizados, mas foi reprovado em outros.
Buccino, o porta-voz da Spirit, disse que a empresa estava trabalhando com os clientes para identificar os aviões afetados. As aeronaves que já estão em serviço serão monitoradas pelas companhias aéreas e retiradas de serviço mais cedo do que o normal, se necessário, disse ele, acrescentando que o mais provável é que as peças afetadas sejam removidas durante as verificações de manutenção de rotina, independentemente de o titânio ter sido verificado.