Richard Linklater fala de comédia sobre um falso matador de aluguel: 'Nadamos em desinformação, em personalidades inventadas'

Em cartaz nos cinemas brasileiros, 'Assassino por acaso', novo longa do diretor de 'Boyhood', teve première mundial no Festival de Veneza

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Adria Arjona e Glen Powell em cena de 'Assassino por acaso' Divulgação

Richard Linklater está convencido de que matador de aluguel é uma figura inventada pelo cinema. E o premiado autor da trilogia romântica “Antes do amanhecer” (1995) e do drama “Boyhood — Da infância à juventude” (2014) bolou um filme inteiro para brincar com esse popular personagem das histórias policiais, a comédia de ação “Assassino por acaso”, em cartaz nos cinemas brasileiros.

—Você ouve sobre casos de pessoas encomendando assassinatos, mas a figura do matador de aluguel não existe. Não estou falando de agentes da máfia, dos cartéis de drogas, gente que tem motivos para matar, mas de uma pessoa comum contratar alguém que nunca viu na vida para eliminar um desafeto, como se estivesse pagando uma pessoa para cortar a grama de seu quintal. Tenho certeza de que os assassinos não são reais, eles foram inventados pelos filmes — afirmou Linklater no Festival de Veneza, onde “Assassino por acaso” ganhou première mundial fora de competição.

Ironicamente, “Assassino por acaso” dividiu a programação da mostra italiana com “O assassino”, a história de um matador de aluguel meticuloso envolvido numa caçada humana em que a vítima é ele mesmo. Mas, diferentemente do thriller dirigido por David Fincher, que enaltece o criminoso, o filme de Linklater tentar desmontar a noção que temos sobre esse tipo de personagem.

Na trama, Glenn Powell interpreta um professor de filosofia de Nova Orleans que faz bico como falso assassino de aluguel para a polícia local — funcionando como isca para pegar criminosos. Um dia, ele se apaixona por uma cliente, entrando num território moralmente duvidoso, e cheio de reviravoltas cômicas.

— Gostamos de violência, gostamos da noção de que talvez esses personagens sejam reais. Isso é um pensamento sombrio, gostamos da possibilidade de eliminar aquele cara que me irritou. Ele só está vivo porque estou deixando ele viver. Mas deveríamos estar felizes por não serem reais — observou o diretor americano. — Mas isso combina com cinema, não é? A gente deveria se perguntar por que gostamos tanto desse tipo de personagem, e por que continuamos a investir neles. Há tanto assassinos (ficcionais) excelentes que no próximo ano haverá mais uns três filmes sobre eles aqui.

Mas o protagonista de Linklater, convenhamos, é um assassino fajuto, sem qualquer talento para o crime em si, a despeito dos talentos para os disfarces. Na vida pública ele é Gary Johnson (Powell), professor de filosofia bem educado e admirado por seus alunos. Fora do campus é um matador de porte imponente e boa lábia, que atrai pessoas com histórias de esposas infiéis ou maridos abusivos, presas assim que o contrato é fechado. Bem-sucedido em seu bico para a polícia, ele passa a se adaptar a cada cliente, criando pseudônimos com trajes e passados distintos. Mas então se vê atraído por Madison (Adria Arjona), uma jovem que quer eliminar o marido violento, gerando uma reação em cadeia de perigos.

— O filme que fizemos tenta bater em muitas notas, a comédia romântica, o filme noir, o suspense, o estudo psicológico do personagem. E, ao mesmo tempo, examina o conceito de identidade, e quão rígidas nossas personalidades podem ser, ou não — explicou Linklater. — É uma questão no mundo contemporâneo, no qual nadamos em desinformação, em personalidades inventadas. Há muitas oportunidades para as pessoas se apresentarem como não são. Então o caso de Gary parecia perfeitamente se encaixar nestes nossos tempos, de uma forma bem estranha. Devemos lutar contra isso, como seres humanos. Todos nós podemos ser melhores.

“Assassino por acaso” é livremente inspirado num artigo sobre crimes reais assinado por Skip Hollandsworth para o Texas Monthly, publicado há mais de 20 anos. O jornalista é o autor do conto “Meia-noite no jardim do leste do Texas”, que inspirou o roteiro de “Bernie — Quase um anjo”, comédia que Linklater lançou em 2011. Mas foi Glenn Powell, com quem o diretor trabalhara antes em “Fast food nation — Uma rede de corrupção” (2006), “Jovens, loucos e mais rebeldes”, e “Apollo 10 ½ — Uma infância na era espacial” (2022), que viu potencial na história de Gary Johnson para um longa-metragem.

— Gostei muito do personagem que Skip, que é meu amigo, revelou naquela reportagem, em 2001. Mas nunca tinha visto aquela história como filme. Mas, em 2020, durante a pandemia, Glenn me ligou para falar sobre aquele artigo, que tinha acabado de ler. Continuava achando que não daria um filme, porque história de assassino de aluguel é sempre a mesma coisa. Mas Glenn sugeriu uma abordagem diferente: Gary estaria preso em sua identidade de assassino, e por isso não sabia lidar com o seu amor por Madison. Foi aí que a ideia ganhou a forma de comédia romântica, com um arco distorcido — contou o diretor, que assina o roteiro com Powell.

O verdadeiro Gary Johnson morreu quando Linklater se preparava para filmar “Assassino por acaso” na Louisiana, enquanto a ação, originalmente, aconteceu no Texas.

— Nunca o encontrei pessoalmente. Falei algumas vezes com ele pelo telefone e ele nunca deu a entender que se incomodava com o fato de estarmos fazendo um filme sobre ele, e usando o nome dele — lembrou o diretor. — Ele era um cara meio estranho, um veterano da Guerra do Vietnã e que tinha uma alma budista, deixava a vida acontecer. Não parecia interessado pelo projeto sobre a vida dupla que levava e suas histórias, mas o convidei para visitar o set quando começássemos a filmar. Isso não aconteceu, mas o filme é dedicado a ele.

Linklater tem quatro novos projetos em diferentes fases de realização — entre eles está “Nouvelle vague”, que reproduz os bastidores das filmagens de “Acossado” (1960), de Jean-Luc Godard (1930-2022), com Zoey Deutch como Jean Seberg (1938-1979) e Aubry Dullin como Jean-Paul Belmondo (1933-2021). Mas o cineasta texano não descarta a possibilidade de dar continuidade à trilogia “Antes do amanhecer”, que gerou novos episódios a cada nove anos (“Antes do pôr do sol”, de 2004, e “Antes da meia-noite”, de 2013).

— Perdemos o gancho dos nove anos alguns anos atrás, mas, enquanto estivermos aqui, nunca se sabe —brincou Linklater. — Mas não vamos fazer um novo filme só por fazer, por mais divertido que a experiência possa ser. Temos que ter algo a dizer sobre a vida das personagens nessa nova fase.

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