Crítica: em 'O Elixir do Amor', despretensão de Menelick de Carvalho revela por que a ópera ainda importa

Produção do Municipal do Rio permite reavaliar, pela comédia de Donizetti, o argumento de René Girard sobre desejo e inveja

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Cena de 'O elixir do amor' Divulgação

Antes mesmo que se levantem as cortinas da ópera "O Elixir do Amor", as margens do palco do Theatro Municipal mostram parte da cenografia simples de Desirée Bastos: arbustos e flores pintadas num suporte recortado para contornar os desenhos, numa vila francesa do século XVIII. A despretensão é a tônica da direção cênica de Menelick de Carvalho (que também dirigiu "Pagliacci” em 2023, no Municipal) para esta obra de 1832 que abre a temporada lírica do teatro. Isso nos permite reconhecer por que o gênero ainda importa e, sobretudo, por que é tão importante essa retomada das encenações do Teatro Municipal já no primeiro semestre, o que não ocorria desde "Um Baile de Máscaras", de Giuseppe Verdi, em 2018.

Ora, a ópera foi o evento artístico por excelência de pelo menos três séculos de história europeia e pan-americana, provocando uma série de grandes pensadores desde a virada entre os séculos XVI e XVII até a ascensão do cinema como plataforma das massas. Era nos teatros líricos que histórias colhidas de mitologias, novelas e romances ganhavam carne, osso e voz, sendo amplificadas num espaço de tempo compartilhado por uma sociedade. Não surpreende que um dos pensadores mais importantes do século 21, o francês René Girard (1923-2015), tenha recorrido justamente ao título da obra de Gaetano Donizetti para formular uma das célebres sínteses de sua teoria do desejo mimético: "A inveja é o afrodisíaco por excelência, o verdadeiro elixir do amor”.

Cena de "O elixir do amor" — Foto: Divulgação

Não é outra a razão que faz a rica Adina se apaixonar pelo simplório Nemorino, um camponês que sempre rejeitou. Ao ver que todas as moças da aldeia se oferecem a ele (apenas por saberem que ele se tornou herdeiro de um tio abastado), Adina se desorienta e corre para conquistar o aparente objeto do desejo delas. Essa seria a base da teoria social criada por Girard: grosso modo, nossos desejos são "triangulares", por serem fundamentalmente imitações dos desejos dos outros que nos cercam. Porém, ver essa teoria exposta em forma de comédia no libreto de Felice Romani é muito mais delicioso do que a minha explicação.

Especialmente quando temos no palco uma voz de brilho matinal como a do tenor ligeiro Aníbal Mancini (já ouvido como Almaviva no Municipal em 2022) circundada por coadjuvantes de inteligência vocal e cênica, como o barítono Vinícius Atique (que, com ótima caracterização do sargento fanfarrão Belcore, se firma como um dos artistas mais perspicazes da cena atual) e o baixo Savio Sperandio (doutor Dulcamara, um charlatão vendedor de poções do amor), que deixou hilariante leitura de "Udite, Udite, o Rustici". Mancini (que se alternará com Guilherme Moreira nas récitas seguintes) encarnou o simplório Nemorino com doçura desde "Quanto è Bella" e, embora tenha sofrido com o volume da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, apresentou qualidade altíssima em duetos e trios, chegando finalmente a uma interpretação de "Una Furtiva Lagrima" que pagou o ingresso. Se o público das próximas récitas for esperto, voltaremos à saudosa prática do bis em cena aberta na praça Floriano.

A soprano Michele Menezes, membro do coro do Municipal, segurou o papel de Adina com dignidade, mostrando uma voz em bom estágio de maturação e capacidade técnica à altura das demandas de Donizetti. A rodagem recente, com uma "Traviata" no currículo, aponta para uma soprano lírica promissora – ela se alterna no papel com Carolina Morel, que também está com Santiago Villalba (Belcore) no segundo elenco. No papel de Gianetta, Fernanda Schleder foi graciosa, com bom timing cômico, e agregou valor musical à montagem.

Musicalmente, porém, a regência de Felipe Prazeres pode trabalhar melhor o equilíbrio da orquestra com as vozes, além de corrigir imprecisões percebidas nas cenas de conjunto, em que o coro se perdeu do bonde do fosso. É preciso ressaltar, no entanto, que a orquestra estava abalada com a perda, na mesma sexta-feira da estreia, de um de seus mais antigos integrantes: o violinista Leo Ortiz, irmão da célebre pianista Cristina Ortiz. O anúncio foi feito pela presidente do teatro, Clara Paulino, pouco antes da apresentação.

Cenicamente, o espetáculo teve especial capricho nos figurinos (também de Desirée Bastos) e uma proposta mais farsesca na cenografia que abrigou os dois atos e foi iluminada com discrição por Paulo Ornellas. Esses elementos contribuíram para que a leitura respeitosa de Menelick salpicasse no "Elixir" boas doses de comédia, bufonaria e, acima de tudo, de uma sabedoria que reencontra a inocência ao fim da experiência – como descreve outro grande filósofo contemporâneo, o americano David Bentley Hart. As velhas histórias ainda não contaram tudo, e podem soar ainda mais refrescantes.

Serviço

"O Elixir do Amor", de Gaetano Donizetti. Direção de Menelick de Carvalho (cena) e Felipe Prazeres (regência). Quando: dias 19 e 26 (às 19h), e 21 e 28 (17h) e 24 (14h, récita para escolas). Teatro Municipal. Praça Floriano, s/n, Cinelândia. Ingressos: de R$ 20 a R$ 80. Cotação: bom

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