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Ela Gente

Luana Génot: Ruanda, não!

O racismo, a xenofobia e outros ismos são problemas estruturais e globais. O filme, a peça ou a política de Boris Johnson renderiam teses de doutorado das mais complexas

Você consegue imaginar uma cena onde pessoas são mandadas à força para outro país após uma medida sancionada pelo governo? Poderia ser a sinopse ou um pequeno spoiler do filme “Medida provisória”? Poderia. O filme estreou recentemente nos cinemas. Se ainda não viu, recomendo. Mas a cena que narrei não é ficção e tampouco um futuro distópico. A medida foi anunciada recentemente pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, como parte da política de imigração.

Por aqui, “Medida provisória”, adaptação da peça de teatro “Namíbia não” (ambas dirigidas por Lázaro Ramos), é uma ficção com muita crítica política. E, inclusive, parte do elenco vem sofrendo perseguição nas redes sociais. O filme mostra um pseudoprocesso de “reparação” do governo brasileiro, que decreta a deportação de pessoas negras para vários países do continente africano. No teatro, era especificamente para a Namíbia, sem respeitar as vontades de as pessoas estarem onde quiserem. Por isso, havia resistência contra a medida. Não queriam a Namíbia.

Além disso, nos dois casos, é um processo feito de forma violenta e sem qualquer tipo de subsídio para os vitimados. Ao mesmo tempo, o filme mostra a inteligência e organização da resistência dos que conseguiram não ser deportados e, obviamente, as controvérsias existentes no coletivo, que nem sempre são unânimes sobre as ações a serem tomadas. Sim, pessoas negras discordam entre si e seria estranho e humanamente impossível serem completamente consonantes umas com as outras.

Do outro lado do oceano, no “dito primeiro mundo”, o chanceler britânico afirma que irá enviar imigrantes com situação irregular no país para Ruanda, visando combater o tráfico humano. A medida tem um custo avaliado em mais de 100 milhões de libras, já está acordada com o governo ruandês e foi duramente criticada pela oposição. Johnson tem sido acusado de racismo e xenofobia.

Aqui e acolá, ficção e realidade nunca andaram tão juntas. Algumas coisas parecem óbvias, mas sabemos que, para muitos que não vivem na pele as consequências mais cruéis do racismo, podem não ser. Ao dizer que a medida de Boris Johnson é uma versão real da experiência em “Medida provisória” não estou distanciando a realidade de lá da que passamos no Brasil. O famoso pensamento “o racismo lá é muito pior” não ganha espaço aqui.

Precisamos estar atentos a essas e outras semelhanças que podem acontecer nas realidades vividas acolá e aqui. O Brasil, por exemplo, tem a terceira maior população carcerária do mundo, e a maior parte é negra. E o exemplo de privação da liberdade desta população não é ficção, e ganha nuances que podem ir da cadeia ao genocídio.

Contextos à parte, o racismo, a xenofobia e outras formas de preconceito são problemas estruturais e globais. E o filme, a peça ou a política de Boris Johnson renderiam teses de doutorado complexas, com numerosas páginas. Por ora e pelo nosso breve momento de reflexão nesta coluna, acredito que, mais do que falar sobre contextos onde a situação é melhor ou pior, prefiro dizer que todas as circunstâncias são abomináveis e precisam de tratamento. E, como vimos no filme, não é por falta de aviso. As situações vividas na ficção ou na realidade devem nos deixar alertas sobre nossas próprias atitudes. Precisamos observar se nos comovemos e se apoiamos ou não, direta ou indiretamente, medidas como essas com nossos votos, curtidas e conversas no WhatsApp. Fiquemos atentos.