Bruno Astuto
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Bruno Astuto


O artista lituano Benediktas Gylys criou uma obra que tinha tudo para ser poética: dois “portais” circulares, instalados em duas cidades diferentes, pelos quais as pessoas pudessem interagir. Dois grandes olhos, na verdade duas grandes webcâmeras ligadas em tempo real, que constroem uma ponte de amizade a despeito da distância. A primeira dupla conectou Lublin, na Polônia, a Vilnius, na Lituânia. A mais recente, Nova York, nos Estados Unidos, a Dublin, na Irlanda, separadas por um oceano. Tudo começou de forma lúdica, com os passantes dando adeusinho de ambos os lados, achando a maior graça. Mas logo a coisa descambou para a baixaria: um cara mostrando o dedo do meio, uma mulher levantando a blusa para sacudir os seios, um sujeito cheirando cocaína e outro cretino colocando imagens do atentado do 11 de Setembro. Ambas as municipalidades tiveram de intervir, as câmeras foram desligadas por um tempo, e as interações não poderão mais acontecer sem o acompanhamento de seguranças.

A coisa mais irônica é que nem o mais sofisticado aparato de homens conseguirá suprimir totalmente o risco de que se desçam mais degraus na escatologia. Rolou até um debate: será que dá para colocar um filtro? Ou desfocar a lente na hora de um gesto agressivo? Que multa aplicar? Quem deverá acompanhar os portais: a polícia ou seguranças particulares?

Não há muito de exatamente novo nesses portais, exceto que se trata de uma experiência coletiva. Já vivemos privadamente essa realidade há alguns anos, interagindo por telas com pessoas que estão do outro lado do mundo e até no quarto ao lado. Um tempo suficiente para também sabermos quão incivilizadas podem ser as pessoas por trás dessas paredes transparentes. Iludidas por um certo anonimato e imbuídas da falsa sensação de estarem protegidas pela película tecnológica, elas se autorizam a perpetrar os mais vis impropérios, indiferentes ao sentimento alheio, ao bom debate, à divergência de opiniões, à evolução social.

Aos poucos, fomos descobrindo como é ineficaz a segurança das empresas que nos conectam, muitas vezes de propósito — afinal seu sucesso financeiro depende de um engajamento viciante, ditado por algoritmos amorais. Envio muitas queixas à Meta por causa de comentários homofóbicos, alguns bem violentos. A maioria das respostas versa sobre algo como “não foi possível avaliar a denúncia” ou que o comentário está “dentro das políticas” de suas redes. A polícia também pena para zelar pelos nossos portais privados; a legislação é lenta e burocrática demais para lidar com múltiplas tecnologias que se renovam numa velocidade avassaladora. Quando o estrago é feito, sobretudo em reputações e na saúde mental, o remédio e a punição só chegam meses, anos depois.

Para o meu próprio equilíbrio, venho tentando não seguir páginas que se prestam ao deboche puramente cruel disfarçado de humor, perfis sensacionalistas que caçam likes, ou vomitadores de opinião sem profunda leitura dos temas sobre os quais gostam de gritar. Ao mesmo tempo, sei que ignorá-los não os fará desaparecer — só não me juntarei à turba de sua audiência nem alimentarei os robôs que os espalham. É a minha maneira pequena, caseira e humilde de fechar o portal que acessa os meus olhos, a minha alma, a energia que entra na minha casa.

Esses portais de Gylys são uma grande metáfora sobre a utopia da civilização conectada, mas há esperança. Como na emoção do rapaz que pediu a namorada em casamento no lado de Dublin e foi aplaudidíssimo pelo público do lado de Nova York. O amor é forte – e é maior.

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