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Economia

Zuckerberg x Cook: Os bastidores da guerra entre Facebook e Apple sobre a sua privacidade

Apple planeja lançar novo recurso de privacidade que obriga proprietários de iPhone a autorizar que aplicativos como o Facebook os rastreiem em outros apps.
Os CEOs da Apple, Tim Cook, e do Facebook, Mark Zeckerberg, têm diferentes posições sobre o futuro da internet Foto: MEL HAASCH / NYT
Os CEOs da Apple, Tim Cook, e do Facebook, Mark Zeckerberg, têm diferentes posições sobre o futuro da internet Foto: MEL HAASCH / NYT

SÃO FRANCISCO —  Em uma convenção para magnatas da tecnologia e da mídia em Sun Valley, Idaho, em julho de 2019, Tim Cook, da Apple, e Mark Zuckerberg, do Facebook, sentaram-se para tentar consertar seu relacionamento desgastado.

Durante anos, os CEOs se reúnem anualmente na conferência, realizada pelo banco de investimento Allen & Co., para se atualizar. Mas, desta vez, o Facebook estava lutando contra um escândalo de privacidade de dados.

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Zuckerberg foi criticado por legisladores, reguladores e executivos - incluindo Cook - por permitir que as informações de mais de 50 milhões de usuários do Facebook fossem coletadas por uma empresa de perfis de eleitores, Cambridge Analytica, sem seu consentimento.

Na reunião, Zuckerberg perguntou a Cook como ele lidaria com as consequências da controvérsia, disseram pessoas com conhecimento da conversa. Cook respondeu acidamente que o Facebook deveria excluir todas as informações que coletou sobre pessoas de seus aplicativos principais.

Facebook pede à Justiça que rejeite ação da FTC para que venda o Instagram e WhatsApp Foto: Regis Duvignau / Reuters
Facebook pede à Justiça que rejeite ação da FTC para que venda o Instagram e WhatsApp Foto: Regis Duvignau / Reuters

Zuckerberg ficou chocado, disseram as pessoas, que não estavam autorizadas a falar publicamente. O Facebook depende de dados sobre seus usuários para direcioná-los a anúncios online e para ganhar dinheiro.

Ao pedir que o Facebook parasse de coletar essas informações, Cook estava na verdade dizendo a Zuckerberg que seu negócio era insustentável. Ele ignorou o conselho de Cook.

Dois anos depois, guerra declarada

Dois anos depois, as posições opostas de Zuckerberg e Cook explodiram em uma guerra total. A Apple planeja lançar um novo recurso de privacidade que exige que os proprietários de iPhone escolham explicitamente se permitem que aplicativos como o Facebook os rastreiem em outros aplicativos.

Um dos segredos da publicidade digital é que empresas como o Facebook seguem os hábitos online das pessoas conforme elas clicam em outros programas, como Spotify e Amazon, em smartphones.

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Esses dados ajudam os anunciantes a identificarem os interesses dos usuários e direcionarem melhor os anúncios ajustados. Agora, espera-se que muitas pessoas digam não a esse rastreamento, prejudicando a publicidade online - e o negócio de US $ 70 bilhões do Facebook.

Perfis tão diferentes dos dois CEOs alimenta a disputa

No centro da disputa estão os dois CEOs. Suas diferenças são evidentes há muito tempo. Cook, 60, é um executivo polido que subiu na hierarquia da Apple ao construir cadeias de suprimentos eficientes. Zuckerberg, 36, abandonou Harvard e construiu um império de mídia social com uma postura de vale tudo em relação à liberdade de expressão.

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Esses contrastes aumentaram com suas visões profundamente divergentes para o futuro digital. Cook quer que as pessoas paguem um prêmio - geralmente para a Apple - por uma versão mais segura e privada da Internet. É uma estratégia que mantém a Apple firmemente no controle.

Mas Zuckerberg defende uma Internet “aberta” onde serviços como o Facebook são efetivamente gratuitos. Nesse cenário, os anunciantes pagam a conta.

Relação cada vez mais fria

A relação entre os CEOs tornou-se cada vez mais fria, disseram pessoas próximas. Enquanto Zuckerberg fazia caminhadas e jantava com Steve Jobs, o falecido cofundador da Apple, ele não faz o mesmo com Cook.

Cook se reunia regularmente com Larry Page, cofundador do Google, mas ele e Zuckerberg raramente se veem em eventos como a conferência Allen & Co., disseram essas pessoas.

Apple vai vasculhar fotos de usuários do iCloud   Foto: Dado Ruvic / REUTERS
Apple vai vasculhar fotos de usuários do iCloud   Foto: Dado Ruvic / REUTERS

Os executivos também já travaram embates. Em 2017, uma empresa política de Washington fundada pelo Facebook e outros rivais da Apple publicou artigos anônimos criticando Cook, criando uma falsa campanha para lançá-lo como candidato à presidência, presumivelmente para mudar seu relacionamento com o ex-presidente Donald Trump.

E quando Cook foi questionado pelo MSNBC em 2018 como ele lidaria com as questões de privacidade do Facebook se estivesse no lugar de Zuckerberg, ele respondeu: “Eu não estaria nesta situação”.

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A Apple e o Facebook se recusaram a disponibilizar Cook e Zuckerberg para entrevistas e disseram que ambos não têm animosidade pessoal entre si.

Em relação ao novo recurso de privacidade, a Apple disse: “Simplesmente acreditamos que os usuários devem ter a escolha sobre os dados que estão sendo coletados sobre eles e como eles são usados”.

Já o Facebook afirmou que o recurso da Apple não é sobre privacidade, e sim sobre lucro.

“Serviços gratuitos com anúncios foram essenciais para o crescimento e vitalidade da internet, mas a Apple está tentando reescrever as regras de uma forma que os beneficie e prejudique todos os demais”, disse uma porta-voz.

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Um abismo se abre

Cook e Zuckerberg se cruzaram pela primeira vez há mais de uma década, quando Cook era o segundo no comando da Apple e o Facebook era uma start-up.

Na época, a Apple viu o Facebook como uma barreira contra o Google, gigante das buscas que se expandiu para o software de telefonia móvel com Android, disse um ex-executivo da empresa.

Por volta de 2010, Eddy Cue, que lidera a á rea de serviços digitais da Apple, procurou Zuckerberg para uma potencial parceria de software, disse o ex-executivo.

Segundo ele, nas reuniões que se seguiram, Zuckerberg disse a Cue que a Apple precisava oferecer um ótimo negócio para uma parceria, ou a rede social ficaria feliz em fazer tudo sozinha. Alguns executivos da Apple sentiram que essas interações mostraram que Zuckerberg era arrogante.

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As discussões eventualmente levaram a um recurso de software que permitia aos proprietários de iPhone compartilhar suas fotos diretamente no Facebook.

Mas o atrito deu o tom. A situação ficou complicada porque o Facebook e a Apple também se tornaram mutuamente dependentes. O iPhone foi um dispositivo fundamental para as pessoas usarem o aplicativo móvel do Facebook.

E os aplicativos do Facebook - que mais tarde também incluíram o Instagram e o serviço de mensagens WhatsApp - foram alguns dos programas mais baixados da App Store da Apple.

Em 2014, os executivos do Facebook começaram a temer a influência que a Apple tinha sobre a distribuição de seus aplicativos com os clientes do iPhone. Essas preocupações aumentaram quando a Apple às vezes atrasava as atualizações dos aplicativos do Facebook por meio de sua App Store, disseram pessoas a par do assunto.

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Os sentimentos negativos da Apple em relação ao Facebook aumentaram logo depois da eleição presidencial de 2016, quando as autoridades federais revelaram que os russos usaram indevidamente o Facebook para inflamar os eleitores americanos.

Em 2018, as revelações de Cambridge Analytica surgiram, destacando a coleta de dados do usuário do Facebook.

Cook decidiu distanciar a Apple do Facebook. E embora tenha levantado a privacidade como uma questão já em 2015, ele a intensificou em 2018. A Apple também revelou um novo lema corporativo: “Privacidade é um direito humano fundamental”.