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Por — São Paulo

As ameaças ao princípio de neutralidade de rede, com cobrança discriminada pelo tráfego de dados, podem acabar com a internet como conhecemos hoje, avalia o pesquisador Kyung-Sin Park. Em entrevista ao GLOBO, um dos fundadores do Open Net Korea e ex-conselheiro do órgão regulador da internet na Coreia do Sul diz que a cobrança, como regra, iria fragmentar a rede - e mudar a ideia de que a conexão com todo o mundo está amplamente disponível na palma de nossas mãos.

O pesquisador acompanha de perto os efeitos das taxas para uso de infraestrutura da internet têm para usuários e empresas na Coreia do Sul. O país é o primeiro e mais emblemático caso de um grande mercado que passou a adotar a cobrança de provedores de acesso à Internet (ISP) pelo tráfego de dados.

Entre os efeitos colaterais, Park destaca a concentração no mercado de provedores de conteúdo e a saída de grandes plataformas do mercado sul-coreano, como o Twitch, serviço de streaming da Amazon. Para os usuários, o impacto mais visível é a degradação do serviço de plataformas.

No Brasil, uma audiência pública da Anatel foi aberta para discutir a possibilidade da criação de uma espécie de taxa de uso da infraestrutura da rede no país. A cobrança é defendida pelas empresas brasileiras de telecomunicação, apoiadoras do chamado fair share (ou "contribuição justa").

Em visita ao Brasil para participar do evento “Neutralidade da rede 10 anos depois: o caminho para a conectividade significativa”, Park diz que o modelo de fair share seria "uma grande erro" para o ecossistema de conteúdo no país. O debate acontece no ano em que o Marco Civil da Internet completa uma década.

O Marco Civil da Internet completou dez anos este mês, mesmo momento em que uma consulta pública no Brasil avalia a implementação de taxas similares à da Coreia. Quais lições o caso de vocês traz?

O fair share seria um grande erro para o ecossistema de conteúdo no Brasil. Hoje você paga para se conectar à internet, mas não paga pela entrega dos dados. Essa tem sido a regra. Se o Brasil mudar isso, quem envia os dados terá que pagar para a empresa provedora. Isso significa que a plataforma será mais cobrada a depender do quanto de conteúdo individual ela hospeda e do tráfego que esse conteúdo gera. Um criador absolutamente popular, por exemplo, vai gerar mais custos. É claro que a empresa fará com que, de alguma forma, o criador compartilhe o custo da entrega dos dados. Podemos imaginar, por exemplo, um mundo onde o YouTube que, ok, agora é gratuito, possa passar a cobrar caso um criador tenha 100 mil visualizações por mês. O YouTube já fica com uma parcela dos ganhos dos criadores, mas terá que ficar ainda mais para compensar as taxas que terá de pagar.

A Coreia do Sul é o exemplo mais emblemático de um país que passou a cobrar taxas pelo uso da infraestrutura de internet. Essa cobrança extra para grandes influenciadores já tem acontecido?

No caso da Coreia do Sul, o YouTube firmou um acordo com os provedores de acesso à Internet (ISP) sul-coreanos para a instalação de um servidor de cache local, que funciona como uma cópia de um servidor, mas que não armazena todos os dados do original. O caminho convencional de transmitir os vídeos a partir de servidores do Vale do Silício seria altamente custoso, então essa solução minimizou os custos.

Imagino que nem todas as plataformas tenham o mesmo poder de negociação…
Claro. Antes de 2016, inclusive, a principal plataforma de vídeos na Coreia era uma empresa nacional. Por causa das altas taxas de acesso à rede, eles deixaram de ser competitivos. Agora, a participação no mercado reduziu para menos de 1%. Quase desapareceram.

Quais têm sido as consequências da quebra do princípio de neutralidade da rede na Coreia do Sul?

Com a internet, o mundo concordou que não haveria cobrança por enviar tráfego de dados. Isso é o que é incrível sobre a rede e é o que mudou a civilização humana, na verdade. Qualquer um pode colocar um vídeo ou uma mensagem e fazer com que esse conteúdo alcance um número ilimitado de pessoas, sem se preocupar com o custo de entrega. Isso mudou na Coreia do Sul a partir de 2016. Os provedores de acesso à Internet (ISPs) que enviam tráfego para outros provedores passaram a ter de pagar uma taxa por isso.

Isso significa que eles têm um desincentivo para hospedar plataformas de conteúdo populares porque, se você o fizer, haverá mais tráfego de pessoas, troca de dados entre ISPs e uma cobrança por isso. As taxas dispararam. Mesmo aplicativos de interesse público, como um que fornecia dados sobre a Covid-19, tiveram problemas pela cobrança. Outra consequência é que muitas startups e provedores de conteúdo transferiram suas operações para regiões onde as taxas de acesso à internet são mais baratas, como o Vale do Silício, nos EUA, ou mesmo o Japão e Hong Kong.

O que acha que aconteceria se esse modelo se tornasse a regra no mundo?
Eu gosto de mostrar um desenho que fiz para ilustrar isso (a imagem mostra o grupo BTS e o rapper sul-coreano Psy, do hit Gangnam Style, reclamando da cobrança das taxas). Se os planos de pagamento para envio de tráfego se tornarem a regra, o BTS será cobrado pelas plataformas à medida que seus vídeos se tornarem mais populares em outras partes do mundo. O povo brasileiro, então, terá menos oportunidade de aproveitar o vídeo do Gangnam Style ou do BTS. Isso irá fragmentar a internet. Se todos os países incluírem uma taxa de cobrança, ou o fair share, isso tornará caro para os provedores de conteúdo enviarem seus dados e o disponibilizarem em outros países. Isso significa que a internet como conhecemos desaparecerá, com todo o valor que ela trouxe de conectar pessoas em todo o mundo.

Como esses efeitos chegam nos usuários de internet sul-coreanos?

As plataformas estão degradando o serviço. Os consumidores são afetados, dentre outras formas, por causa disso. Hoje, muitos vídeos no YouTube são em qualidade 4K. O que acontece na Coreia do Sul é que as plataformas de conteúdo não podem fornecer vídeo em 4K por muito tempo porque precisam pagar mais taxas de acesso à internet para os provedores. Isso reduz a qualidade da experiência do usuário e afeta os influenciadores. Pense nas pessoas que ganham a vida colocando vídeos on-line e que precisam ter um vídeo de menor resolução.

Outro efeito é a disponibilidade de Wi-FI gratuito. Podemos usar o exemplo da cidade de Seul, que é um grande provedor de conteúdo porque também tem seu próprio site. Eles poderiam usar os mesmos recursos de rede que já utilizam para fornecer um bom Wi-Fi público para as pessoas que andam pela cidade. Com as taxas, isso deixa de ser possível. As pessoas precisam de planos móveis muito caros. A opção de poder ir a algum lugar para usar um wi-fi gratuito é limitada. Se vier a Seul, vai ver que existe em pouquíssimos lugares. Esse é um outro problema.

A Twitch, plataforma de streaming da Amazon, simplesmente deixou a Coreia do Sul pelo custo de operar no país. O mercado também está encolhendo?

A saída da Twitch mostra que esse não é um problema somente para os provedores de conteúdo domésticos, mas também internacionais. E muitos consumidores e produtores de conteúdo ganhavam a vida através da Twitch. A opção deles agora serão os provedores de conteúdo domésticos. Acontece que os ISP locais têm dificuldade em arcar com as altas taxas e, portanto, precisam diminuir a qualidade do que entregam. Na ponta, isso significa menos receita para os criadores de conteúdo e uma experiência ruim para os consumidores e espectadores.

Qual caminho você enxerga para que os governos e reguladores equilibrem as necessidades de infraestrutura da internet e assegurando a neutralidade?

Um dos argumentos que usam sobre taxar big techs pelo uso de infraestrutura é que os ganhos dos provedores poderiam ser usados para expansão da rede para áreas rurais ou para conectar mais pessoas. Mesmo agora, sem a cobrança, os provedores de serviços de internet teriam como construir essa infraestrutura. A razão pela qual eles não constroem não é o tráfego, mas o fato de haver menos consumidores lá. O que eu acredito que precisa ser feito é apertar ainda mais as regras sobre neutralidade porque uma vez que os ISPs comecem a cobrar pelo tráfego, eles podem usar esse poder de precificação para aumentar ainda mais seus lucros. Eles vão poder cobrar taxas de acesso ou atrasar a construção de redes em locais sem conexão a menos que tenham garantia de receita, como tem acontecido em outros países.

E então quais seriam outras formas de financiar a expansão da infraestrutura de internet?

Há outras várias outras maneiras. Você pode, por exemplo, cobrar um Imposto de Renda mais alto para empresas estrangeiras como as big techs, que estão fazendo muito dinheiro no Brasil. Agora, se você fizer a cobrança pelo tráfego de dados, esse custo será repassado e vai escorrer para os usuários individuais, vai desincentivar as pessoas a usar a internet como plataforma de comunicação.

Quais os riscos da falta da neutralidade na rede em um momento de expansão da inteligência artificial (IA) por toda a internet?

Essa IA é treinada por meio do aprendizado de máquina. E o que entra nos dados de treinamento afetará os resultados que ela irá gerar. Muitas pessoas reclamam que os resultados do ChatGPT soam muito como o Washington Post ou o New York Times. Isso ocorre porque ChatGPT tem uma diversidade limitada nos dados de treinamento. Se a neutralidade da rede for violada e se os provedores de conteúdo forem cobrados pelo envio de tráfego, o que vai acontecer? Apenas os grandes sobreviverão. A diversidade do conteúdo realmente desaparecerá, o que significa que os resultados da IA vão representar as vozes daqueles que podem pagar pela cobrança do tráfego.

O regulador de telecomunicações americano (FCC) votou nesta semana por restabelecer o princípio da neutralidade da rede do país. Como viu o caso americano de revogação desse princípio?

Mesmo depois de Trump abolir a neutralidade da rede, os SPs do país não buscaram pela cobrança. Isso significa que não houve discriminação baseada em conteúdo, nem tentativa de cobrar pelo tráfego de dados pelos ISPs americanos. O modelo da internet foi tão bem-sucedido que houve uma espécie de conformidade voluntária com a regra de que você paga pelo acesso à internet mas não pela entrega de dados. O custo dessa transação apenas mataria a rede.Se você assiste Netflix 24 horas por dia, sete dias por semana durante um mês, você paga mais? Não paga. Você paga pelo acesso a internet, mas não pelo tráfego. Isso estava tão fortemente estabelecido que, mesmo sem a decisão do FCC para neutralidade da rede, os ISPs americanos não ousariam violá-la. O que o FCC fez foi basicamente reafirmar isso. No caso do Brasil, não é uma questão só de permitir a cobrança, mas um mandato. Não vai só autorizar, mas vai requerer que os ISPs a façam, o que, no fim, chega nos usuários com a degradação dos serviços.

Há uma discussão importante no Brasil também sobre a soberania em relação a plataformas estrangeiras, no cumprimento de determinações da Justiça. Como vê essa tensão?

Se a soberania significa que empresas estrangeiras têm que cumprir com as regras locais, eu acho que há muitas maneiras de o governo fazer isso. A Autoridade de Proteção de Dados da Coreia da Sul impôs uma multa enorme para a Meta por usar publicidade direcionada, algo que é feito em todos os outros países, não apenas na Coreia. Mas fomos os únicos a dizer que era ilegal e a impor uma multa. A Meta não pode ignorar isso. Há conteúdos que são ilegais no Brasil. O governo pode ir à Justiça e obter decisão para que os servidores (ISPs) derrubem a página ou site que carrega esse conteúdo.

Como a regulação pode equilibrar esse debate?

Na Coreia do Sul, houve um tempo em que as plataformas estrangeiras eram um espaço seguro para as pessoas exigirem mais democracia, criticarem o governo e compartilharem informações importantes, enquanto as plataformas locais removiam aquilo que fosse demandado pelo governo. O mesmo acontecia em relação à privacidade. Eu sei que as coisas mudaram, mas o que eu quero dizer é que quando fazemos leis, devemos nos preparar para o pior cenário. Devemos realmente nos preparar para um governo futuro, não importa quão autoritário ele seja, possa abusar de seu poder para conduzir a censura e a vigilância sobre as pessoas.

O Brasil agora tem um bom governo, aberto para a democracia. Mas se os tempos mudam e um governo ruim entra no poder, ele terá a tentação de abusar desse poder. E isso será ruim não apenas para as plataformas, mas para o povo brasileiro. Portanto, se as redes sociais quiserem desfrutar da liberdade que estão usufruindo, elas devem trabalhar mais com a sociedade civil que está lutando pela democracia e precisariam ouvir suas demandas por uma moderação razoável, como na remoção de discurso de ódio e desinformação.

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