Economia
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RESUMO

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GERADO EM: 19/06/2024 - 09:09

Rubens Ricupero e o Plano Real: Desafios e Perspectivas

Rubens Ricupero conta detalhes sobre o lançamento do Plano Real e seu papel na comunicação com a população. Destaca os desafios políticos e a importância da estabilidade econômica. O ministro revela o episódio do escândalo da parabólica e sua visão sobre o futuro da economia brasileira.

Ao lado do então presidente Itamar Franco, em 1º de julho de 1994, Rubens Ricupero, ministro da Fazenda, lançava o real. Ele era o símbolo da nota de R$ 1 que chegava às mãos dos brasileiros. Trinta anos depois do lançamento do plano e de sua saída do ministério, após o “escândalo da parabólica” que custaria seu cargo, o embaixador afirma que este foi “talvez o maior sofrimento” de toda a sua vida“. Na ocasião, numa conversa prévia a uma entrevista que seria transmitida pela TV Globo, vazou o áudio de Ricupero falando: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. E o que é ruim, a gente esconde”, em referência aos primeiros números da inflação do real.

Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, exibe células do Real que tem emolduradas — Foto: Edílson Dantas/Agência O Globo
Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, exibe células do Real que tem emolduradas — Foto: Edílson Dantas/Agência O Globo

Ricupero, que havia se tornado uma espécie de garoto propaganda do real, cometeu assim a maior gafe pública sobre o plano. Nessa entrevista ao GLOBO, a segunda de uma série com os personagens- chave do Plano Real, o diplomata destaca o papel da comunicação com a população para o sucesso de um programa econômico completamente diferente de todas as tentativas anteriores de combater a inflação e que partia de premissas tecnicamente complexas, como a criação da URV (Unidade Real de Valor, índice usado para atrelar os preços a uma banda cambial), que depois virou o real. E lembra que, na época, havia uma espécie de torcida, na sociedade, para que o plano funcionasse:

— Não por minha causa, nem por causa do governo, mas é que ninguém aguentava mais. Havia no Brasil um clima como esse, que tem na Argentina hoje. Mesmo com um Milei (o presidente Javier Milei), as pessoas não se revoltam porque que ninguém aguenta mais.

Leia abaixo a íntegra da entrevista do embaixador que acaba de lançar seu livro de memórias. E veja, neste vídeo curto, a visão de Ricupero sobre qual foi a maior conquista do Plano Real e o que ainda precisa ser feito para a estabilidade da economia brasileira.

30 anos do Real: Rubens Ricupero lembra os momentos mais tensos no lançamento do plano

30 anos do Real: Rubens Ricupero lembra os momentos mais tensos no lançamento do plano

O senhor construiu sua carreira na diplomacia e em temas relacionados ao meio ambiente, e era ministro da Fazenda num momento histórico, na implantação do Plano Real. Como foi estar ali?

Eu já tenho 87 anos. E costumo dizer que, de toda a minha vida, esse episódio foi aquele em que eu mais me aproximei de poder dar alguma contribuição, ainda que modesta, na história do Brasil, porque o presidente Itamar (o então vice-presidente Itamar Franco assumiu o governo em 1992, após o impeachment de Fernando Collor, e Ricupero foi para o ministério da Fazenda em março de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso deixou a pasta para se candidatar à presidência) me associou ao Real. Eu não queria ser ministro da Fazenda, não por humildade ou falsa modéstia, mas porque eu tinha medo. Não era minha área. Eu até sugeri ao Itamar: “por que o senhor não convidou Edmar Bacha, Pedro Malan?” E Itamar me deu uma resposta assim, meio oráculo de Delfos. Ele me disse: “não, não, já examinamos todas as opções e o senhor é a única alternativa”. Uma resposta de mineiro. Eu deduzi que ele queria alguém que ele escolhesse, que não fosse já indicado por outros. Eu respondi que, como funcionário público a serviço do país, aceitaria o cargo.

E perguntei o que ele queria que eu fizesse. E a resposta foi: “só quero que o senhor aplique o plano com a equipe que está aí”. Essa frase para mim foi mágica, porque muitas vezes ele queria interferir no plano, ou outras pessoas ligadas a ele, com a melhor das intenções do mundo. Ele queria aumentar o salário mínimo, reajustar os servidores da Polícia Federal, os militares, os funcionários públicos. Nada disso era possível. Eu tinha que dizer não a tudo. E quando ele insistia muito, eu sempre dizia: “o senhor se lembra do que me disse? Se o senhor insistir, eu terei que fazer só o show. Não vai ter nem plano nem equipe, porque todo mundo vai embora”. E aí ele acabava se dobrando. Então, voltando à sua pergunta sobre como eu me sentia: eufórico e aliviado, porque até a véspera eu tive que resistir a muitas pressões de todo o lado. E tenho uma gratidão infinita pelo Itamar. Ele teve papel fundamental, ele botou na cabeça a ideia de que ainda havia tempo para um plano de combater a inflação, mesmo com poucos meses para terminar o governo, sem maioria no Congresso. As condições não eram nada boas.

Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco — Foto: Edílson Dantas/ Agência O Globo
Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco — Foto: Edílson Dantas/ Agência O Globo

E como era a relação com o presidente Itamar?

Na véspera de quando eu ia apresentar a ele a Medida Provisória com os feriados bancários para a entrada em circulação do real, ele (Itamar) me telefonou e disse: “Olha, ministro, eu não me sinto seguro. Não tem tabelamento de preços, não tem fiscal, não tem congelamento”. Eu disse a ele: “Presidente, nós já falamos isto tudo inúmeras vezes. Foi isso que fez fracassar o Plano Cruzado. Dessa vez não vamos cometer esse erro de novo”. E quando eu dizia: “quer que eu traga alguém para te falar de novo sobre o plano”, o presidente respondia: "Eu não falo com ninguém da equipe, só falo com o senhor”. Eu estava ao lado do Itamar, na agência da Caixa Econômica Federal, no Palácio do Planalto (na foto histórica em que são apresentadas as primeiras cédulas do real). Para mim, foi o grande momento, o grande momento da existência. Eu até hoje sinto uma alegria de ter participado ao lado de Fernando Henrique, que foi quem fez a maior parte do trabalho ao lado dessa equipe extraordinária que estava lá. Todo o arcabouço técnico e econômico era deles. A minha contribuição foi a comunicação com a população. E eu era o anteparo, junto ao Itamar, ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores. Nós tivemos sustos enormes. Tivemos que trabalhar junto aos tribunais para não haver decisões que acabassem comprometendo o orçamento. Foi uma luta terrível também no lado político.

“Nizan Guanaes (publicitário)disse que o real precisava ter a cara de alguém: ‘Peguem esse velhinho’. Esse velhinho era eu.”

O senhor acabou virando o símbolo do real no início do plano.

Eu devo dizer que também isso eu não havia previsto. Logo que me tornei ministro, no início de abril de 1994, uma das primeiras providências que eu tomei foi pedir a dois colegas, o embaixador Marcos Galvão, que agora está em Pequim, e o embaixador Gelson Fonseca, hoje diretor do Arquivo Histórico no Rio de Janeiro, para irem ao Rio de Janeiro, a São Paulo, a Belo Horizonte, conversarem com especialistas em pesquisas de opinião pública, os marqueteiros, para indagar qual era a imagem que eles tinham do Plano Real. E eles voltaram e me disseram: “Olha, a imagem em geral é positiva. Todo mundo tem a impressão de que é um plano bem articulado, que dessa vez não está se prometendo demais”. As pessoas tinham uma boa impressão. Só que ninguém compreendia direito a complexidade do plano. Por exemplo, o que é a URV (Unidade Real de Valor, um índice criado para ancorar os preços e que, em julho de 1994 foi convertido no real)? O que é que é essa coisa misteriosa? É uma moeda contábil? O que é isso? Ela vai ficar depois? Quanto tempo ela dura? Quando é que o real entra em circulação? Em que taxa? Como vai ser feito isso? Eles (os especialistas em opinião pública) diziam: "Tudo isso são informações que falta fornecer. Não é uma questão de propaganda. É informação”.

Até que aquele publicitário Nizan Guanaes, que eu não conheço, disse: “Olha o real precisa ter a cara de alguém. Vocês pegam esse velhinho de vocês”. Esse velhinho era eu. Eu tinha 57 anos, agora tenho 87. Então Nizan disse: "Pega este velhinho e enquadra ele assim em primeiro plano para explicar”. Eu aí disse: “Bem, eu vou falar com o Itamar.” O que eu achava é que, se deveria ter a cara de alguém, é a do presidente. Ele gostou da ideia, mas na mesma hora disse: “Não, Deus me livre, eu não faço isso jamais. Não é minha vocação. Eu não gosto disso. Tem que ser o senhor. O senhor é que vai ser a cara do real”. Depois é que eu me dei conta que ele tinha razão. Porque se o real tivesse fracassado, eu era um ministro a mais que ele substituiria. Agora, se ele se associasse muito diretamente ao real e depois não desse certo, acabava a presidência dele. Ele não queria se expor demais, porque ele, como a maioria, não tinha certeza que ia dar certo.

Rubens Ricupero (à esquerda) e o presidente Itamar Franco (à direita) mostram as novas notas do Real — Foto: Roberto Stuckert Filho
Rubens Ricupero (à esquerda) e o presidente Itamar Franco (à direita) mostram as novas notas do Real — Foto: Roberto Stuckert Filho
“O presidente Itamar Franco não queria se expor demais, porque ele, como a maioria, não tinha certeza que (o plano) ia dar certo”

E como foi feita a campanha?

No começo, eu pensei que nós podíamos contratar agências de publicidade, como a gente vê hoje, que fazem esses filmes bonitos, na época de campanha eleitoral. Mas aí eu me dei conta de uma coisa incrível sobre o Ministério da Fazenda e o Banco Central. Não tinham nenhuma verba que pudesse servir para esse objetivo. Parece inacreditável hoje em dia, quando a gente vê a fortuna que se gasta com isso. Depois, parecia que nós poderíamos encontrar alguma coisa do Banco do Brasil, mas aí nós tropeçamos num outro obstáculo. É que a Lei de Licitação requer prazos muito longos. Não dava tempo. Quando o Itamar me convidou para ser ministro, eu imaginei ingenuamente que o plano fosse como um projeto de uma casa. Tudo desenhado, com etapas, datas, tudo marcado. Aí eu fui descobrindo que não era bem assim, havia lá aquelas ideias fundamentais, como a da URV, mas muita coisa estava sendo resolvida à medida que se avançava.

Ao sair do Palácio do Planalto, eu dei uma carona ao Fernando Henrique, que estava lá e eu perguntei: “qual é a estratégia que você tem para aprovar a medida provisória da URV no Congresso?" E para minha surpresa, ele disse: “não tem estratégia nenhuma, não é para aprovar. Se você insistir em aprovar, eles vão desfigurar completamente o plano. Vão pendurar uma porção de coisas.” Naquele tempo não se usava essa expressão jabutis que se usa hoje. Mas é o que ele queria dizer. Eu disse: “Mas então como é que vamos fazer isso?” Ele respondeu: “Você vai renovando no final de cada mês”. Naquele tempo, a medida provisória durava só 30 dias. Então eu disse a ele: “vai chegar o momento em que nós vamos ter que lançar a moeda. E aí, como é que faz?". Ele respondeu: "Você faz uma outra medida provisória” A moeda é, por definição, o símbolo da estabilidade. E não se pode lançar uma moeda com uma medida provisória que pode caducar a qualquer momento. Eu não aceitei esse conselho. Eu chamei o Edmar Bacha, que, aliás, eu devo dizer, pensava como eu. Ele que se empenhou no Congresso, fez um trabalho maravilhoso. E então, teve outra surpresa.

Qual surpresa?

Nesse dia, eu reuni a equipe na minha casa e perguntei a eles: “Bem, qual é o dia D, o dia do lançamento da moeda física”. Eles me disseram: “Mas isso não está definido ainda”. Mas como não? Vocês já lançaram a URV". Tinham lançado há um mês, há muito pouco tempo. Aí eles começaram a discutir. Vários deles queriam esperar um ano. Eu disse: “se eu tiver que esperar um ano, quem vai lançar essa moeda é o Lula, porque ele está com 42% nas pesquisas de opinião (Lula enfrentava Fernando Henrique na campanha presidencial de 1994). E o Lula já disse que é contra a moeda, que é um estelionato eleitoral. Ou a gente lança ou esse plano acaba antes de começar”. Eles queriam que desse tempo, por exemplo, para que as pessoas se acostumassem com o salário em URV.

Eles tinham razão do ponto de vista técnico, mas não era possível esperar. As eleições estavam a seis meses de distância e eu então perguntei qual é o prazo mínimo dos mínimos para preparar o lançamento? E eles me disseram três meses. Eu fui falar com Itamar, e o Itamar bateu o martelo.

E como vocês fizeram?

Eu tinha que preparar esse lançamento e, como o prazo das agências (de publicidade) era incompatível com a Lei de Licitação, eu tinha que fazer isso com a Radiobrás. O primeiro programa, que foi ao ar em abril, foi um programa devotado a convencer as pessoas que a aplicação da URV para rever os salários ia preservar o valor de compra e até nós usávamos como frase “o salário não vai derreter mais no bolso do trabalhador”. Agora a gravação era muito amadorística. Foi no meu gabinete. A iluminação não era boa, não havia movimento de câmera e eu me aborreci muito e aí pedi ao pessoal uma equipe. E veio a jornalista Maria Clara do Prado (que escreveu o livro “A real história do real”).

Tudo foi minuciosamente planejado: fazíamos um programa a cada oito, dez dias, com a escolha prévia de um tema: uma vez era o URV, a outra vez era sobre o dia da mudança da moeda e quando seria. Mostrávamos como seriam as novas cédulas. A outra vez era para dizer às pessoas, que, agora que entrou em vigor a moeda, os preços não vão mais ser remarcados toda hora. Vocês não podem correr para comprar, senão vai faltar produto. Esperem para comprar depois. O tema de cada programa era discutido com toda a equipe que dava todos os dados. Passava por várias redações e me esforcei muito em sair daquela linguagem do economês e de falar diretamente com a dona de casa ou o aposentado com uma linguagem simples. Você sabe que em certos momentos eu fui até a Central de Abastecimento, a Ceasa, com as câmeras, e eu perguntava “quanto estava o quilo do tomate?” Eles me diziam: “Está tanto”, “Nas está muito caro. Semana passada era muito mais em conta o que é que aconteceu?” “Ah, ministro, houve uma geada. Nós ficamos sem tomate, mas logo, logo vai ter, é uma planta que produz rápido.” “Eu dizia bem, se não tem tomate, o que é que tem mais barato? Tem abobrinha. Compre abobrinha no lugar do tomate”.

Pode parecer até ridículo, mas as pessoas perguntavam. As pessoas se sentiam muito respeitadas. Todo mundo costuma dizer no Brasil que o nosso povo não escreve, que não articula, que ele não reage. Olha, não é a minha experiência. Eu tenho malas e malas cheias de cartas, de telegramas, de pessoas comuns. Têm cartas de crianças, de gente muito idosa, de religiosos, de pessoas dos mais diferentes tipos de vida, dizendo a alegria que eles tinham de se sentirem consultados, que eles estavam participando.

Todos os passos do plano foram sendo anunciados...

Não houve surpresa nenhuma. Ninguém teve choque de coisa alguma. Você vê que até hoje os tribunais estão cheios de ações contra todos os planos, menos contra o Plano Real. Ninguém perdeu dinheiro com o Plano Real. Ao contrário, as pessoas ganharam poder aquisitivo.

Como o senhor vê o papel da comunicação no sucesso do plano?

Embora os economistas tenham uma certa tendência de minimizar a importância da comunicação, eu acho que a comunicação foi absolutamente fundamental. Não por causa minha, nem por causa do governo, mas é que ninguém aguentava mais. Havia no Brasil um clima como esse que tem na Argentina hoje. Mesmo com um Milei (o atual presidente da Argentina, Javier Milei), as pessoas não se revoltam porque ninguém aguenta mais. Depois de anos e anos e anos, chega o momento em que as pessoas torcem para dar certo. E foi o que aconteceu dessa vez no Brasil. Eu não tenho a ilusão de ter feito a cabeça de ninguém. Felizmente deu certo. Não é que eu creio ter sido um mérito meu, havia uma equipe grande que preparava isso tudo. Eu fui uma espécie de intérprete que procurei fazer chegar isso as pessoas.

Rubens Ricupero, ministro da Fazenda, em entrevista após o escândalo das parabólicas — Foto: Sérgio Marques
Rubens Ricupero, ministro da Fazenda, em entrevista após o escândalo das parabólicas — Foto: Sérgio Marques

O senhor saiu do ministério depois do "escândalo da parabólicas". Este episódio poderia ter posto o plano em risco?

E isso eu nunca achei. Eu devo dizer que outras pessoas tiveram essa impressão. Eu nunca achei. Na verdade, eu sabia o que eu tinha dito. Eu, durante muito tempo, não gostava de lembrar nem de ler sobre isso, que para mim foi um episódio muito penoso. Talvez o sofrimento maior de toda a minha vida e um grande fracasso da minha parte. Ninguém gosta de lembrar essas coisas. No entanto, a verdade é que aconteceu e deve ser enfrentada tal como é. No mês de julho (mês que começou a circular o real), eu estava viajando. Eu não estava em Brasília quando me telefonaram no fim de semana para me dizer que a taxa de inflação, a primeira taxa do real que o IBGE estava terminando de calcular e ainda não tinha sido anunciada, era bem maior do que a equipe esperava, que era no máximo 3%. E era o dobro. Aí, eu cancelei o programa, voltei para Brasília. Isso era num sábado. No domingo, eu reuni em Brasília os membros da equipe que estavam lá e eles me deram explicações. O problema maior era a metodologia. Todos os índices de inflação eram baseados na coleta de preços do dia 15 ao dia 15. O Real foi lançado no dia 1º de julho. Então ele vinha com uma carga de 15 dias do mês de junho, e isso não tinha como remediar. Era um falso sentimento de aumento, porque nos supermercados e nas lojas os produtos não estavam sendo remarcados. Tanto assim que a equipe estava até temerosa, porque começou a ver um aumento muito grande de compras de eletrodomésticos. O perigo era que os formadores de opinião pública se convencessem disso (da alta da inflação) e aí seria um desastre.

Página do Globo de 4 de setembro de 1994, informando sobre a queda do ministro Rubens Ricupero — Foto: Acervo
Página do Globo de 4 de setembro de 1994, informando sobre a queda do ministro Rubens Ricupero — Foto: Acervo

Aí eu comecei a multiplicar as entrevistas pelo Brasil inteiro e, a essa altura, entrou um outro fator, dessa vez pessoal. Eu estava muito desgastado física e psicologicamente. Eu fiquei muito acelerado nessa fase. Eu nunca tinha vivido uma experiência igual. Eu estava acelerado e aquilo começou a me subir à cabeça. Eu passei a achar que o destino do real dependia de mim. Era uma ideia absurda, um pouco dramática demais. Hoje eu reconheço: eu fiquei intoxicado com isso e comecei a me sentir envaidecido. Eu me lembro que dias antes daquele episódio da parabólica, eu tinha ido ao Recife e os populares vinham beijar a mão da Marisa (mulher de Ricupero) e a mim e diziam: “O senhor é o nosso pai”. Nesse dia que fazia dois meses do Real, eu dei 24 entrevistas. Eu comecei muito cedo de manhã, falando até em rádio sertaneja. Fui à televisão, falei para jornais, falei para revistas, falei para correspondentes estrangeiros. Eu não almocei e não jantei. Eu estava sob medicação. Eu estava muito, muito exausto, muito exausto. Era uma sexta-feira de um calor tremendo. Eu estou dizendo isso, não para me justificar, que a culpa é minha, mas para explicar o contexto em que isso aconteceu. À noite, eu estava esperando o sinal da última entrevista para o Jornal da Globo que é bem tarde da noite. Todas as luzes do meu gabinete estavam apagadas.

Eu costumo me comparar à personagem do Monteiro Lobato, a Emília, a bonequinha dos livros do Sítio do Picapau Amarelo, que em certos momentos ela abria a torneirinha das asneiras. Foi o que aconteceu comigo. Durante 19 minutos eu derramei uma porção de tolices. Muitas eram de pura vaidade, bobagens, coisas assim

Tinha uma câmera perto de mim que tinha uma luzinha vermelha, mas eu não sabia que ela estava captando. Eu estava conversando com o jornalista e, num certo momento eu não sei o que me aconteceu. Eu costumo me comparar à personagem do Monteiro Lobato, a Emília, a bonequinha dos livros do Sítio do Picapau Amarelo, que em certos momentos ela abria a torneirinha das asneiras. Foi o que aconteceu comigo. Durante 19 minutos eu derramei uma porção de tolices. Muitas eram de pura vaidade, bobagens, coisas assim. Não me reconheço mais naquele momento, mas o fato é que eu falei. E houve um momento em que o jornalista (Carlos Monforte) me fez uma pergunta: “mas, ministro, o senhor não acha que esse plano já fracassou como os outros? A taxa de inflação tem sido muito alta, maior do que se esperava”. Aí eu disse a ele: “Olha, eu sei que não. O que me dizem os membros da equipe que conhece essa matéria, que a coleta dos preços até agora indica uma queda brusca da inflação, que ainda temos que esperar alguns dias, mas alguns deles acham que no próximo mês é capaz até de haver um aumento próximo de zero”. Ele me disse: “Bem, essa é uma grande notícia. Vamos dar então como furo na entrevista”. Eu aí disse aquela frase fatídica: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. E o que é ruim, a gente esconde”. Só que imediatamente eu acrescentei: “só que eu não posso dar essa notícia, porque eu tenho um compromisso com a equipe”.

Quer dizer, as pessoas não se deram conta que eu estava dizendo uma grande bobagem, mas eu estava fazendo o contrário do que eu estava dizendo. Porque, se de fato eu não tivesse escrúpulos, eu não teria razão nenhuma para não dar essa notícia que ele queria dar. A única coisa que me impedia é que as pessoas, a equipe, tinham me pedido para esperar até fechar o cálculo completo. Então eu até disse a ele: “Hoje é sexta-feira, eu na segunda falo com a equipe. Se eles estiverem de acordo, eu te dou a notícia”. Mas é curioso. Você vê o poder da palavra. As pessoas se fixaram nas bobagens que eu disse e não no meu comportamento.

Qual foi a sensação ao saber do vazamento das declarações?

Eu fiquei evidentemente arrasado. Quem me trouxe a notícia foi o meu querido amigo, que morreu há pouco tempo, o embaixador Sérgio Amaral. Eu estava na minha casa, eu tinha até me deitado num sofá e me senti como se eu fosse um papel de seda transparente, como se eu estivesse desaparecendo, e o peso e a enormidade daquilo caindo sobre mim. Agora, eu sabia que eu não tinha dito nada que fosse a confissão de um crime ou que eu estivesse mentindo. Eu estava impedindo a divulgação de uma notícia que era verdadeira, apenas era inoportuna. E naquele momento, eu me dei conta que aquilo não destruiu o plano, mas destruiu a minha credibilidade. Nunca neguei a minha responsabilidade. Nunca tentei transferir isso a ninguém. A culpa foi minha. Não foi culpa, foi responsabilidade. Culpa é quando você faz um ato ilícito. Eu não fiz nenhum ato ilícito, eu cometi em um grande desastre verbal. Eu nunca fui acusado de nada. Nunca houve nenhum processo no dia seguinte. No domingo, eu fui à televisão e eu pedi desculpas à nação, ao Brasil todo, assumindo aquilo que eu tinha feito, como até hoje eu assumi. Como vocês sabem, eu nunca mais estive em nenhum posto público no Brasil..

O senhor mesmo afirmou que era o anteparo do plano. Quais eram as condições políticas para um plano de estabilização num governo tido de transição, já que Itamar assumiu quando Collor perdeu o mandato?

As condições eram muito desfavoráveis, porque além de tudo o que você falou, é preciso não esquecer que o Collor, logo no início do governo, tinha aplicado a medida mais dura, mais drástica que jamais se tentou, que foi o confisco da poupança (todos os saldos bancários foram bloqueados numa tentativa de, ao reduzir drasticamente o dinheiro em circulação, forçar uma queda da inflação). Então isso traumatizou. Houve casos de suicídio por causa do confisco. A opinião pública se sentia muito machucada. As condições políticas eram ruins. O Congresso, curiosamente, que hoje é tão complicado, na época acabou colaborando. Acho que fez parte daquele movimento da nação como um todo, que não aguentava mais o que estava acontecendo.

Eu vou te dar um outro exemplo: Itamar era contra a privatização, uma das exigências que o ministro da Justiça tinha me trazido da parte dele. Ele queria, imaginem vocês, que houvesse na Medida Provisória (de criação do real) um artigo explícito, proibindo a privatização da Vale do Rio Doce, da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica. Ele queria isso porque, na época, o Persio Arida (um dos formuladores do Plano Real) tinha tido uma ideia muito boa, pena que ela nunca saiu do papel. Era criar algum fundo que seria alimentado com os recursos da privatização, que se faria para abater a dívida pública interna. Itamar então ficou alarmado. Ele era inteiramente contra a privatização, sobretudo da Vale. Eu tive que convencê-lo que colocar um artigo de proibição era ridículo, desnecessário, que qualquer privatização teria que começar com uma portaria do ministro da Fazenda permitindo a venda de ações. E eu não ia fazer isso sem a luz verde dele.

Não teve, naquele momento, nem as privatizações nem a abertura comercial nem as privatizações. É preciso lembrar que, antes do Plano Real, o Brasil conseguiu renegociar sua dívida externa (ou seja, sair da moratória decretada durante a Ditadura Militar, o que permitiu ao país voltar a ter financiamento internacional), num trabalho incrível do Pedro Malan (que depois viraria ministro da Fazenda do governo Fernando Henrique). O Fernando Henrique depois conseguiu fazer as privatizações. E, com o acordo da dívida externa e com o que veio depois, que foi acúmulo de reservas, já no governo Lula, bem depois, o Brasil resolveu dois problemas que a Argentina até hoje não resolveu: a estabilidade da moeda e a situação externa sólida, sem depender do Fundo Monetário Internacional.

E o que faltou fazer?

Falta fazer a outra metade do Plano Real, de certa maneira, que seria incutir nos governantes brasileiros a necessidade da responsabilidade fiscal que este governo não tem.

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