Cultura

Tania Alves: 'Vivi todas as loucuras e riscos, sexo, drogas e rock and roll'

Eternizada como Maria Bonita e no ar em 'O clone', atriz está em quatro filmes inéditos, encarna personagem sem gênero no teatro e, em entrevista, lembra experiências de amor livre com homens e mulheres e doideiras nos anos 1970: 'Não sei como estou viva'
Apesar de ser carioca, Tania Alves sempre foi colocada no papel de nordestina: 'As protagonistas eram louras, de olhos claros. De repente, veio a Sonia Braga e abriu portas' Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Apesar de ser carioca, Tania Alves sempre foi colocada no papel de nordestina: 'As protagonistas eram louras, de olhos claros. De repente, veio a Sonia Braga e abriu portas' Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Tania Alves está de volta. E vem com tudo. Após longo período de ostracismo no audiovisual, mas muita atividade como empresária dona de spas, a atriz integra o elenco de série na Netflix ("Olhar indiscreto") e filmes inéditos ("TPM, mon amour", de Eliana Fonseca; "Tudo de bom", de Ajax Camacho; e "O aniversário do sr. Lair", Marco de Castro). Também está no longa "Senhoritas", de Mikaela Plotkin, em que vive Lucy, uma septuagenária moderna e animada, que injeta libido e prazer de viver na rotina pacata de uma amiga a quem vai visitar após anos de afastamento.

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Aos 72 anos, Tania estreará ainda seu primeiro monólogo em meio século de carreira. Eternizada como Maria Bonita e protagonista do filme "Parahayba mulher macho" (dirigido por Tizuka Yamazaki, em1983), ela agora encarnará uma personagem sem gênero na peça "Criogenia de D. - Ou manifesto pelos amores perdidos".  O espetáculo, previsto para agosto, é uma adaptação do livro homônimo de Leonardo Valente, lançado em 2021 pela editora Mondrongo e que caiu nas graças de Fernanda Montenegro (ela compartilhou em seu perfil no Instagram um vídeo lendo trechos do texto). A obra gira em torno de D., que transforma a história de seus cinco casamentos falidos numa vingança em formato de livro.

Eternizada como Maria Bonita e protagonista do filme 'Parahyba mulher macho', Tania Alves vai interpretar uma personagem sem gênero na peça 'Criogenia de D. - Ou manifesto dos amores perdidos', baseada em livro homônimo de Leonrado Valente Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Eternizada como Maria Bonita e protagonista do filme 'Parahyba mulher macho', Tania Alves vai interpretar uma personagem sem gênero na peça 'Criogenia de D. - Ou manifesto dos amores perdidos', baseada em livro homônimo de Leonrado Valente Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Na entrevista a seguir, a atriz, que participou de novelas como "Tenda dos milagres" e "Pantanal", está no ar na reprise de "O clone" e lançou vários discos como cantora, reflete sobre as mudanças de comportamento da sociedade. Diz não saber como as relações atuais começam, "já que paquera virou assédio", e conta que viveu o amor livre com homens e mulheres nos anos 1970. Lembra ainda a violência doméstica do pai, revela que a menopausa a libertou do período fértil ("meu controle de natalidade era complicado, tive que fazer alguns abortos") e que experimentou todas as drogas ("vivi todas as loucuras, não sei como estou viva").

O livro trata de dilemas atuais como relações fluidas, traição, fetiches e dramas filosóficos contemporâneos, como medo da solidão. Trata também das nossas hipocrisias. Qual a importância de discutir esses assuntos?

Quando li, fiquei impressionada com a sofisticação literária. O Leonardo conseguiu mergulhar profundamente na alma humana, o livro mexe com todo mundo. Acho que as relações são a grande crise do mundo atual e que a revolução será afetiva. A crise de amor que enfrentamos é o que gera guerra, exploração do homem pelo homem, miséria, intolerância. Falo do amor com "A" maiúsculo, da forma como as pessoas se tratam, da perda da conectividade.

Quando eu era pequena, queria tirar o sofrimento das pessoas. Eu mesma sofria muito em uma família disfuncional. Nunca fui santa, mas queria fazer milagre. Queria também ser todas as pessoas do mundo por um segundo. Virar atriz é a realização desse sonho. Somos um corpo só. Não sou eu quem está dizendo isso, é a física quântica.

Por que sua família era disfuncional?

Meu pai era muito violento, autoritário, praticava violência doméstica. Nunca o vi bater na minha mãe, mas já o vi tirar um revólver para dar um tiro nela. Muitas pessoas dizem "ah, que saudade da minha infância". Eu não tenho a mínima. Estou cada vez mais feliz, amorosa, com menos medo, mais inteira. Sabe quando você liga o "F"? Consegui ligar até para mim mesma no palco, e tudo ficou muito melhor. Tinha muita autocrítica. Estou mais feliz que nunca.

Quero, no mínimo, viver até 100 anos, porque agora é que ficou bom. Quem se acha velho com 40 anos e se acomoda, está perdido. Cuidem dos seus corpos, máquinas altamente perecíveis, porque a melhor parte ainda está por vir. Tudo que aprendi e posso compartilhar com as pessoas, o que pesquiso sobre saúde, qualidade de vida, os relacionamentos que tive...

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Assim como a protagonista do livro, você está no quinto casamento. Continua acreditando nessa forma de se relacionar? Qual é o acordo atual entre vocês?

Gosto de monogamia sequencial. Um de cada vez. Se não está bom, vai para o esquenta de outro. Já estudei muito sobre fidelidade. Sei que não é da natureza humana, mas emocionalmente não seguro a onda. Achava que meu casamento não ia dar certo, porque ele é 30 anos mais jovem, então disse: "Só te peço que use camisinha, não me deixe saber e cuidado porque sou muito inteligente".

Porque tem aquele momento que é só seu e ninguém precisa saber, né? Se acontecer da minha parte, a prioridade é não deixar ninguém sofrer. Não é abrir mão de um momento imperdível, mas ter certeza de que ninguém vai ficar mal.

Duas pessoas ficarem juntas durante décadas num amor verdadeiro, com saudade, querendo ficar juntas, sintonizadas e namorando é para poucos, né?  Só conheço dois casais assim. Era o que eu queria desde o primeiro, sou muito romântica.

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Sua personagem na peça não tem gênero. Como vê as transformações de comportamento da sociedade , as questões de gênero, as diferenças que trazem as novas gerações, hoje navegando na fluidez sexual?

Acho maravilhoso. Rodei um filme com mulheres e todas falavam de suas namoradas. Muitas mulheres não querem ter filhos. Vejo filhas de amigos que escolhem ter e não querem nem saber do pai. Antes, a gente vivia grudada em homem. O desprendimento das mais jovens é incrível.

E ninguém tem que achar nada, as pessoas devem fazer o que querem desde que não prejudique o próximo. Essa é a minha única bandeira: o preconceito contra o preconceito. O fato de a protagonista do livro não ter gênero universaliza a história ainda mais. Quero viver mais 100 anos porque tem muita coisa maravilhosa vindo aí. Acho que o ser humano ainda vai ter um planeta amoroso.

Consegue ser otimista diante de guerras, ódio e intolerância?

Acho que o ser humano já foi muito pior. Colonizadores, escravidão, Inquisição, nazismo, apartheid. Hoje, está tudo às claras, ninguém engana mais ninguém, não existe segredo quando existe Internet.

Apesar de você ser carioca, sempre foi colocada no estereótipo da mulher nordestina por causa do seu tipo físico. Isso a incomodou?

Tinha isso, mas não era nada doloroso, deprê. Eu achava que não podia reclamar, eram papéis maravilhosos. Mesmo depois de Maria Bonita ( Tania interpretou a personagem na minissérie "Lampião e Maria Bonita", na TV Globo, em 1982 ), eu sempre fazia "a popular".

Tinha uma vontade secreta de fazer Gilberto Braga, urbano, para ser algo diferente. Mas fiz "Ti ti ti" e, paralelamente, fazia meus shows cantando música brasileira nos anos 1950, glamour total. Também fiz goiana, mato-grossense, uma miniera no filme "Cabaret mineiro", com que ganhei Kikito em Gramado ( melhor atriz coadjuvante, em 1981 )...

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Mas a mulher com perfil latino só ganhou protagonismo poucos anos atrás. A não ser quando a história exigia, como no caso da Gabriela de Sonia Braga, e da sua Maria Bonita...

Verdade. As protagonistas eram sempre louras, de olhos claros. De repente, veio a Sonia Braga e abriu portas. Depois dela, eu. As coisas mudaram com Maria Bonita e "Parahyba Mulher Macho", ganhei prêmios internacionais e me tornei símbolo sexual. Achei revolucionário ter mestiças como símbolos sexuais. No ano seguinte, foi a Roberta Close. Viva a diversidade!

Mas esse lugar de símbolo sexual, sim, me incomodava, por verem o aspecto físico em primeiro lugar. Mas é o povo que dá esse tipo de título, brasileiro gosta disso, né? Mas sempre deixei claro que não ficaria fazendo caras e bocas.

Também encarnou personagens sensualizados. Chegou a se sentir objetificada ou a sensualidade sempre foi uma característica pessoal sua?

Talvez vejam em mim um prazer de viver tão grande que chamam de sensualidade. Mas também fiz "Morte e vida Severina" ( filme de Zelito Viana, de 1977 ) com dentes estragados, uma sertaneja maltratada pela vida em "Órfãos da terra" ( especial da Globo de 1984 )...

Teve que fazer um esforço dobrado para sobreviver nesse meio com padrões difíceis de romper?

Sempre fiz muito esforço. Minha família era contra, fiquei à beira da indigência morando num teatro. Fazíamos uma peça que ninguém ia ver porque era teatro nordestino, cordéis ( com o Grupo Chegança, de teatro mambembe ). Éramos 16 pessoas, e um empresário quis nos levar do Rio para São Paulo em troca de hospedagem e alimentação. Mas a hospedagem era no teatro. A gente forrava o chão de jornal para dormir.

Já fiz espetáculo num leprosário no interior da Amazônia em troca de comida. A resiliência e a paixão pelo teatro eram maiores que tudo. Lembro de mim e Elba Ramalho fazendo uma peça sobre a chegada do Lampião ao inferno. As duas de biquíni, chifre de diaba, numa temperatura de zero grau. E totalmente felizes. A gente era dessas.

Não entrava dinheiro. Uma menina do grupo fazia programas e dividia o dinheiro que ganhava com a gente. Pergunto para jovens atores hoje, e eles me falam que não existe mais ninguém assim.

Sofreu racismo? Assédio?

Quando fiz Maria Bonita, emendei 10 filmes e muitas peças. O que pode ter acontecido de racismo, eu nem percebi. Não tenho do que me queixar. O tempo resolve tudo. Sou um pouco esquisita. Amigos dizem que intimido as pessoas. Já tive situações de abuso de poder, mas não tenho vocação para vítima, autocomiseração não é a minha praia. Não fico nessa "ah, tadinha de mim que sou mestiça". Morria de medo dessas coisas, porque não saberia como lidar, então, evitei pedir trabalho, fugi como pude.

Também não sei onde começa o assédio. Ninguém mais pode dizer "eu te amo" ou que a pessoa está bonita que pode ir preso. O amor já está difícil demais. Claro que não pode falar pornografia ou tocar sem consentimento, mas um galanteio? Uma relação tem que começar de algum jeito. De repente, as mulheres não gostam mais de paquera. Não entendo a palavra assédio, porque só vou se eu quiser.

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Hoje, tem a mesma libido de antes?

Meus hormônios, graças a Deus, deram uma baixada, porque era uma loucura ( risos ). Meu marido e eu temos uma vida sexual maravilhosa. Sempre que a gente pode, faz lua de mel, namora 24 horas por dia, beija muito. Mas o dia em que eu não tiver mais desejo, não vou forçar a barra.

Não lido bem com essa história de que vou morrer. Não é medo, é vontade de viver. O que eu puder fazer para esticar a vida, farei. Meu estilo de vida está top, estou cercada de médicos de ponta, há as células tronco, medicina regenerativa... Tenho 72 anos, mas não correspondo à expectativa de vida das pessoas normais, porque me cuido demais.

Encara a menopausa como algo bom ou ruim?

Só tem sintomas quem tem excesso de toxinas por má alimentação. Como mudei a minha há 50 anos, continuei igual. Fazer sexo sem engravidar é felicidade extrema, porque o nosso controle de natalidade é um fantasma. Acabou o período fértil, graças a Deus! Foi muito complicado, fiz alguns abortos. Minha mãe fez 14. O padrão hormonal da família era uma loucura!

Namorou muito nos anos 1970, época do amor livre?

Muito, era um absurdo! Mas sempre desde que ficasse mais feliz do que já sou sozinha. Nos anos 1970, era diferente da compulsão de hoje, que é consumista. Era "faça amor, não faça guerra". Mas era amor mesmo. Mesmo que depois você não soubesse nem o nome da pessoa, o que aconteceu várias vezes comigo, sempre teve amor.

A gente olhava no olho da pessoa e dizia "eu te amo". E amava. Queríamos fazer revolução pelo amor, resgatar o amor verdadeiro e acabar com o falso moralismo das instituições, da Igreja... Sobreviv,i apesar de toda essa loucura. Foi muito bom, ainda bem que vivi essa época. Aquilo mudou o mundo.

Transou com mulheres?

Sim, claro. Tive experiências muito agradáveis, aquela maciez. Mas a preferência é pelo sexo oposto, gosto desse embate, desse jogo das diferenças. É mais intenso, a pressão é maior.

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Atualmente, as mulheres estão explorando mais a própria sexualidade e dando vazão aos seus desejos. Você parece ter descoberto isso há tempos..

Não precisamos de permissão para nada. Por isso, não gosto da palavra "empoderamento". Parece que alguém deixou, sabe? A gente não precisa pedir licença para homem. Mulheres poderosas sempre existiram. Exemplo disso foi Tizuka Yamazaki com seu megafone, comandando o set de "Parahyba mulher macho", mais de 300 pessoas, homens a cavalo, enquanto amamentava o filho dela. Isso é poder! Vivendo sua plenitude como fêmea, com o gênero que tiver.

Um alfabeto só não vai dar conta das variáveis da sexualidade humana. E isso é maravilhoso, a liberdade que podemos viver, posso usar todos os meus lados, masculino e feminino.

Como dá vazão ao seu lado masculino?

Sou muito masculina, um trator. É o que me fez sobreviver naquela época em que você beijava na boca e ficava grávida, sabe? Eu era a única virgem da faculdade. Tinha um pai violento, mas, por dentro, uma pomba gira louca.

Meu primeiro casamento com o pai da Gabriela ( sua filha mais velha ) foi uma extensão da minha família. Quando comecei a fazer ioga, pensei: "Olha, existo além dos contextos familiares". Aí, comecei a fazer teatro e não sobrou pedra sobre pedra do casamento. Vivi todas as loucuras, riscos, me soltei no sexo, drogas e rock and roll.

Foi fundo nas drogas?

Experimentei todas as drogas daquela época, não sei como não morri. Só não usei as injetáveis, porque sempre tive essa coisa de saúde. No começo da carreira, bebia todos os dias. A gente fechava os bares do Leblon, acabava no 24 horas, tomava o sopão dos motoristas de táxi e acordava às seis da tarde do dia seguinte para começar tudo de novo. A primeira vez que vomitei e saiu um filete de sangue eu parei de beber. Sou uma sobrevivente, não sei como estou viva.