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Cultura

'Só com reflexão vamos quebrar ciclos de violência', diz Stênio Gardel, autor de 'A palavra que resta'

Em romance de estreia, autor cearense acompanha idoso que resolve se alfabetizar para ler a carta recebida, aos 19 anos, de seu amor de adolescência, de quem precisou se afastar por conta da homofobia
O escritor Stênio Gardel Foto: Fernanda Oliveira
O escritor Stênio Gardel Foto: Fernanda Oliveira

Aos 13 anos, Stênio Gardel, cearense de Limoeiro do Norte, anunciou à família seu desejo de ser escritor e que, portanto, precisava de uma máquina de escrever. Insistiu tanto que a mãe que comprou a máquina. Hoje, aos 41 anos e lançando seu primeiro romance, “A palavra que resta”, Gardel admite que a máquina que ele tanto queria sempre foi deixada meio de lado. Ele logo arrumou um computador e lamenta nunca ter aprendido a datilografar. Continua, porém, apegado a ela, que o ajuda a matar a saudade da mãe, que faleceu em janeiro, quando Gardel fazia os últimos ajustes no livro. A mãe, no entanto, teve tempo de ler alguns trechos do romance.

— Minha mãe foi crucial para que eu estivesse aqui hoje. Ela morava comigo, então, me via escrevendo e revisando. Era a primeira pessoa para quem eu contava as novidades do livro — diz Gardel, numa conversa por vídeo com o GLOBO, de sua casa, em Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza. — Sinto uma dor muito grande quando percebo que ela não está aqui para ver o livro publicado.

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Embora sonhasse com uma carreira literária desde a adolescência, Gardel já tinha passado dos 30 anos quando começou, de fato a escrever. Antes, ele rascunhava algumas ideias, que guardava na gaveta. Em 2013, se inscreveu num dos ateliês de narrativa oferecidos pela escritora Socorro Acioli, em Fortaleza. Em 2016, fez o curso novamente e começou a trabalhar em “A palavra que resta”, romance nascido da junção de uma experiência com uma imagem.

A experiência se deu no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Araripe, município de pouco mais de 20 mil habitantes na divisa do Ceará com Pernambuco. Às vezes, atendia moradores dos distritos rurais que não sabiam assinar o próprio nome.

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— Em alguns, notava certo acanhamento, uma vergonha por não saber assinar, como se, naquele momento fossem lembrados dos diversos motivos que os impediram de frequentar a escola quando eram mais novos — recorda Gardel, que é engenheiro civil de formação, embora “nunca tenha projetado um muro na vida”.

A imagem que surgiu aleatória na cabeça dele era a de um homem idoso que tinha nas mãos uma carta que era incapaz de ler. Depois, apareceram algumas perguntas: quem é esse homem? Que carta é essa que ele tem nas mãos? O que vai fazer com ela? Ao tentar responder cada uma delas, Gardel foi tecendo o enredo de seu romance, que acompanha Raimundo, um senhor analfabeto, que, há 50 anos, guarda uma carta de Cícero, o rapaz que ele amou quando moço.

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Criados na zona rural, Raimundo e Cícero precisaram se afastar quando as famílias descobriram que eles se encontravam às escondidas. Cícero acabou indo embora do povoado sem se despedir, deixando uma carta. Aos 71 anos, já longe da roça, reconciliado com sua sexualidade e encorajado pela travesti Suzzanný, Raimundo resolver, enfim, aprender a ler para descobrir o que diz a carta que o assombrou a vida toda.

Gardel começou a trabalhar esse enredo em sucessivos cursos com Acioli.

— Os cursos de escrita criativa foram decisivos porque tiraram de mim a ideia de que o trabalho depende só de inspiração e me ajudaram a tomar a decisão de realmente escrever — explica ele, que apesar de já ser um autor publicado, não abandou os cursos. — Aprendi que é possível estudar diferentes maneiras de narrar, de usar o tempo e o espaço, de desenvolver os personagens, sem precisar de fórmulas que engessam a criatividade.

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De todos os alunos que já teve na vida, Gardel foi o único que Acioli indicou para sua própria editora, a Companhia das Letras. Em conversa com o GLOBO, a escritora diz que, desde o início, Gardel lhe impressionou por ser um leitor “sofisticado”, já ter escolhido sua filiação literária (Faulkner, Raduan Nassar etc.), estar seguro da história que gostaria de contar e ser paciente.

— Stênio tem facilidade para aceitar críticas e, ao mesmo, não abre mão do que quer. Quando um colega lhe deu uma longa sugestão sobre “A palavra que resta”, ele ouviu tudo tranquilamente, agradeceu e disse: “Nunca tinha pensado por esse lado. Mas, não. Obrigado.” — conta Acioli, que não poupa elogios ao aluno. — Como mulher hétero, não sei o que é homofobia, mas, lendo o livro, senti na carne essa dor, que não me é familiar, e chorei. Fazer o leitor sentir a dor de personagens que são diferentes dele é o que todo escritor deve almejar.

Capa de 'a palavra que resta' Foto: Divulgação
Capa de 'a palavra que resta' Foto: Divulgação

“A palavra que resta” chamou atenção antes mesmo de chegar às livrarias. Quando a sinopse do livro foi divulgada no Twitter, os leitores já começaram a preparar os lenços. “Nem li e já chorei”, “tem cara de ser livro que acaba com o meu psicológico”, diziam alguns comentários. Os direitos para adaptação audiovisual do romance já foram adquiridos pela Pródigo Filmes. Segundo Victoria Castelli, diretora de desenvolvimento da produtora, trata-se de “uma história muito brasileira e muito cinematográfica”. Ela também ressalta a “escrita muito particular” de Gardel.

A prosa do livro destoa do estilo seco e comedido de boa parte da literatura brasileira que acumulou elogios e prêmios em tempos recentes. No entanto, em termos de forma e conteúdo, está em consonância com as demandas atuais por mais diversidade. Alternando entre o passado e o presente, Gardel narra uma história de violência, repleta de personagens excluídos, com uma linguagem poética, marcada fortemente pela oralidade, pelo vocabulário regional e pelo fluxo de consciência.

— Queria que o texto se aproximasse da oralidade, da fala de alguém que não recebeu a educação formal, mas que não parecesse uma caricatura. Alguns leitores contaram que leram o livro em voz alta — diz Gardel, que celebra o interesse da literatura em discutir o que passou muito tempo silenciado. — Só com reflexão vamos conseguir quebrar os ciclos de violência.

"A palavra que resta"

Autor: Stênio Gardel. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 152. Preço: R$ 54,90.