Ruth de Aquino
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Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Um homem cai de um chalé no meio da neve, em Grenoble, na França, e deixa um rastro de sangue. O filho de nove anos volta de um passeio com o cachorro e encontra o pai morto. Grita pela mãe, que corre à sacada e chama o socorro e a polícia. Acidente, suicídio ou assassinato? A Justiça vai esclarecer. Ou não. Na plateia, você também é jurado. E, muitas vezes, duvida do próprio veredito.

Se fosse apenas um filme francês de suspense e tribunal, “Anatomia de uma queda” não teria cinco indicações ao Oscar. A estatueta mais provável é direção. De Justine Triet, 45 anos. É um thriller sobre relações familiares. Amor, competição, culpa, infidelidades, divisão de tarefas, inveja, autoestima. Claramente, um filme dirigido por uma mulher. Transgressor. Por mudar o jogo de poder convencional na vida de um casal hétero.

Ao contrário de tantos filmes em que a mulher é enganada e vive à sombra do marido, em “Anatomia” ela tem a personalidade mais forte – e o sucesso profissional como escritora de autoficção. E ele não suporta esse desnível. Também escritor, ele a culpa por seu bloqueio criativo. Ele se ressente por cuidar mais da casa e do filho. Confronta a mulher, que o traiu com outra. Grava as brigas sem ela saber.

Um dos pontos altos do filme, que tira nosso fôlego na plateia, é a discussão na véspera da morte, exposta no tribunal num áudio. Como interpretar o que foi dito ali com tanta mágoa recíproca, e os ruídos de gritos, tapas e socos? Como interpretar a liberdade assumida e o poder de uma mulher no casamento? Aparentemente, com desconforto. Será que ela o matou? Será que ele se matou?

“Anatomia” é um filme denso, complexo, psicológico, com personagens muito bem construídos, um roteiro intrigante, diálogos envolventes, atuações preciosas. Lembra, nos embates de casal, “Cenas de um Casamento”, de Bergman. Mas “Anatomia” tem muito mais apelo a amplas bilheterias do que o filme sueco. Lota os cinemas no mundo. Por muitos motivos.

O cenário é idílico, acontece uma morte suspeita e o menino não enxerga quase nada, por causa de um atropelamento pelo qual o pai se sente responsável. Mas o garoto tem autonomia, toca piano, navega nas redes, passeia sozinho com seu cão e não é tratado em casa como alguém com deficiência. Ele pode se tornar essencial ao desfecho.

O menino Daniel (Milo Machado Graner) deveria ser indicado para Oscar de ator coadjuvante. Usa lentes de contato no filme. É incrível como expressa no olhar – e em depoimentos sensatos no tribunal – todas as nuances e dores de tragédias tão precoces. Sua atuação só perde, naturalmente, para a protagonista, a mãe, a alemã Sandra Hüller, espetacular nas ambiguidades da personagem.

O roteiro de “Anatomia” foi escrito por Justine em parceria com o marido, Arthur Harari, pai de seus dois filhos e um pouco mais jovem que ela. Achei curioso. Como o casal do filme – e muitos que conheço na vida real hoje –, ela é mais famosa e bem sucedida do que ele. Talvez seja uma relação bem resolvida. Talvez ele não se incomode. Quem sabe ele só a admire e desfrute. Assim deveria ser com casais que se amam e trabalham na mesma área. Justine dá entrevistas elogiando Arthur como parceiro. Veremos o que acontecerá se Justine for premiada como melhor diretora.

“Anatomia” ganhou Palma de Ouro em Cannes, mas não foi selecionado pela França para representar o país no Oscar. Ironia. Poderia ganhar a estatueta como melhor filme internacional. Tem poucas chances ao competir com blockbusters e superproduções que nem vou listar aqui.

Cinema, como tudo na vida, é subjetivo. Prefiro roteiros que convidam à reflexão. Não despreguei os olhos, e o coração, da tela, ao longo de duas horas e meia. E foi difícil dormir logo depois.

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