Não parece, mas o túnel cortinado com tiras de papel laminado rosa é a porta de entrada de uma roda de samba no Centro do Rio. Não parece porque, quem está ali sabe — músicos, dançarinos, e principalmente, o público —, o samba nunca foi lá muito cor de rosa.
O Sambay, primeira roda de samba gay do Brasil, é rosa, mas também é de muitas outras cores. Nesta sexta-feira (28), Dia do Orgulho LGBTQIA+, o evento-movimento completa 1 ano com show especial no Circo Voador. Haverá participações de Preta Gil, Thiago Pantaleão, Marvvila, Alinne Rosa, Marcelle Motta, Marina Íris, Marcos Sacramento e Nilze Carvalho, entre outros.
Há muito o que se comemorar, dizem os sócios do Sambay, produtores culturais experientes da noite carioca. A aventura começou com Márcio Lima, criador de festas como Boho, Mug e Vaca Profana. Amante do samba, ele sentia falta de um lugar onde gays, como ele, se sentissem completamente à vontade para curtir. Márcio queria materializar o óbvio.
— Acho que a gente precisava ter um espaço nosso, onde a gente pode paquerar, levar um namorado, poder se beijar tranquilamente. Porque o ambiente do samba sempre foi muito machista, né? É uma coisa do samba. Então você meio que se poda. Como você vai olhar, como você vai se comportar, como você vai agir. O único momento que o samba é mais inclusivo com a comunidade LGBTQIA+ é na época do Carnaval — afirma Lima.
Junto a ele, Pablo Falcão, criador do Chá da Alice, festa que há mais de 15 anos é fenômeno no "vale", se somou à empreitada. O pernambucano, assim como seu sócio, enxergava também enxergava uma demanda. E uma oportunidade de devolver ao público LGBTQIA+ o que, na verdade, nunca lhes pertenceu de fato.
— A gente foi se afastando do samba por ele ser uma coisa opressora, machista — diz Falcão. — O samba sempre esteve muito ligado a coisa do futebol, do churrasco, do pagode, sempre algo muito masculino. Pra gente sempre foi um lugar meio opressor. Mas a musicalidade sempre fez parte da nossa vida, né? Então, quando a gente tem um espaço como Sambay, que é inclusivo, essa comunidade se sente segura. É muito engraçado a gente ver vários meninos falando que nunca gostaram de samba, quando na verdade ele associava o gênero à insegurança que sentia quando ia numa roda. A partir do momento que ele está seguro, presta mais atenção na música. Eles estão se aproximando daquilo que a cultura deles também, mas que foi lhe roubado por ignorância dos outros.
Com a ideia embaixo do braço, os sócios foram atrás de uma cara pro Sambay. Acharam o cara, Rodrigo Drade, 36 anos, cantor de uma família com linhagem de músicos e compositores de Niterói. Drade, que à época do convite comandava noites de samba no Rio Scenarium, na Lapa, viu no Sambay uma chance de se libertar também, como explica seu produtor, Felipe Carreiro, que acabou entrando na sociedade da festa.
— Trabalho com o Drade há mais de 6 anos. E sempre tive muita dificuldade com os contratantes de deixar o Drade falar abertamente sobre sua orientação sexual. De ser quem ele é. Isso nos magoava muito. Pra gente conseguir ganhar dinheiro, fazer shows, tínhamos que esconder quem ele era. Hoje, na roda Sambay, ele é livre pra ser o artista com todo o potencial que ele tem. E se tornou referência para artistas LGBTQIA+ que tinham medo de entrar no mercado do samba por conta do preconceito estrutural que existe. O Sambay é mais que uma festa, é uma expressão de resistência, um evento político, social, que defende a diversidade — detalha Carreiro.
O Sambay engrenou e virou evento semanal, atraindo um público fiel que inclui nomes como o da vereador Mônica Benício e do ator Silvero Pereira. Vale dizer que a configuração não é exatamente a de uma roda de samba (a apresentação musical se dá num palco), mas é como se fosse, dada a comunhão entre artistas e público.
Os bailarinos Wend Caster, Davi Araújo, Luis Otávio e Anna Callado dão um brilho especial à apresentação. O repertório é variado, vai de clássicos da velha guarda, como Jovelina Pérola Negra, Ataulfo Alves e Cartola, até os mais contemporâneos, como Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho e Alcione. Vez ou outra, alguma canção de Anitta e Ludmilla, ou "I will survive", de Gloria Gaynor, devidamente repaginada para o momento. Drade diz que evitam-se músicas que reforçam o estereótipo machista do samba.
— A gente vive um mercado hétero que compõe sobre relacionamentos heteronormativos. Tem letras que evito cantar. Musicas extremamente machistas. Não temos letras e musicas que contemplem nossa realidade. Uma das poucas é do Fernando Procópio, que é hétero, mas foi muito corajoso de ter feito esse samba, chamado "Eu vos declaro", dos versos "Eu vos declaro marido e marido / Eu vos declaro mulher e mulher / Hoje a união tem um novo sentido / Tudo é permitido, casa quem quiser". Essa musica se tornou um hino pra gente. Sempre cantamos. É uma questão de consciência social. Somos um dos países que mais mata pessoas da comunidade LGBTQIA+ no mundo — analisa Drade.
Em um ano de história, a Sambay cravou seu nome na agenda cultural do Rio e ainda há muita coisa por vir, como um álbum de músicas autorais. As conquistas, no entanto, não escondem a realidade de que eventos como esse ainda enfrentam resistência e carecem de falta de apoio.
— Tem essa dificuldade, que é muito maior do que para os eventos héteros. As marcas falam que são diversas, mas não são — aponta Márcio Lima. — Até marca de bebidas tem receio na hora de patrocinar, coisa que não acontecem com outros eventos. É muito fácil patrocinar uma Pabllo Vittar, por exemplo, que já está mega estourada. Mas e os que estão começando?