Cultura
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Por Maria Fortuna — Ceará

Fábio Assunção desembarca de um carro com vidro fumê e ar-condicionado no talo sob um sol escaldante. Ele veste sunga verde e um roupão azul aberto, que infla com o vento. Pisa os pés calçados num mocassim sobre a areia branca da falésia de uma cidadezinha no litoral do Ceará. É lá onde está sendo rodado o thriller erótico “Motel Destino”, novo filme do premiado diretor Karim Aïnouz.

Com o corpo mais magro, os olhos azuis escondidos atrás de lentes de contato de outra cor, cabelos tingidos num tom alaranjado e bigode, o ator está irreconhecível. É recebido pelo cineasta com abraço e beijos. Tira os fones de ouvido, dos quais ecoa uma música do Pink Floyd, e os entrega para a assistente de direção Luciana Vieira.

Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier: triângulo amoroso — Foto: Divulgação / Jarbas Oliveira
Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier: triângulo amoroso — Foto: Divulgação / Jarbas Oliveira

O rock psicodélico integra a playlist feita por Fábio especificamente para este trabalho e o coloca na frequência da cena que está prestes a rodar. É sua primeira do longa. A mais tensa do filme. O diretor decide mudar a roupa do ator. O tal roupão esvoaçante perigava roubar a cena. A figurinista Ananda Frazão oferece um shortinho laranja e uma blusa azul brilhante, que Fábio mantém desabotoada. É um look meio galã anos 1970. Como se o personagem do ator — Elias, um ex-policial agressivo, dono de um motel de beira de estrada— estivesse parado no tempo.

A diretora de fotografia, Hèlene Louvart, parceira de Karim em filmes como “A vida invisível” e no inédito “Firebrand”, faz os últimos ajustes de câmera, enquanto a primeira assistente de direção, Gabi Ribeiro, finaliza as marcações para iniciar a filmagem. O restante da equipe, formada por uma juventude diversa de 30 e poucos anos, precisa se esconder para não aparecer no quadro. E busca abrigo atrás da única moita que espalha parcas sombras pelo lugar.

Concentrado para alcançar o registro de interpretação que deseja para o personagem, Fábio dá um gole num energético, tranca o maxilar, sacode os braços olhando para o céu, dá pulos. É como se chamasse uma força externa, um bicho. E ele vem. Vem e recai sobre o seu parceiro de cena, o jovem cearense Iago Xavier, de 23 anos, que faz, naquele dia, sua estreia num set de cinema. A dupla, que forma o trio de protagonistas ao lado de Nataly Rocha (Iago e Nataly foram selecionados por teste entre mais de 500 atores), com quem compõe um triângulo amoroso, encena discussão acalorada. Troca empurrões, dedos na cara. A cada take, a voltagem aumenta. E mexe com Iago que, no final, cai num choro compulsivo que faz todo seu corpo tremer.

Karim solta um efusivo “cortaaa!”, enquanto bate palmas espaçadas. Abraça Iago, coloca a mão no coração do ator. O cineasta sabe que está provocando altas emoções. Por isso, lança mão de delicadeza sempre que vai orientar o elenco. Chega perto e sussurra o que deseja no ouvido. Ele também exige concentração máxima da equipe. Encara o set como ritual. É como se criasse um campo magnético para proteger o ambiente. Ninguém pega no celular ou estabelece qualquer conversa que não seja sobre o que está acontecendo. Tampouco puxa papo com os atores.

‘Tripas para fora’

— Tem uma coisa bonita quando você diz “ação”, parece que o tempo está suspenso. O que faço é tentar que essa sensação permaneça o dia todo. É um foco, um respeito pelo que a gente está fazendo. Não dá para ficar falando de outra coisa quando tem um ator colocando quase as tripas para fora — diz o diretor, em entrevista após o set.

Quando não estão rodando, os atores se mantém em silêncio absoluto, com a cabeça baixa, olhando para o chão. Parecem em transe. Na hora do almoço, comem em um espaço separado.

Toda essa, digamos, discrição contrasta com a empolgação de Karim quando ele assiste, pelo monitor, a um take que considera bom. Sente um prazer tão grande que mal consegue se controlar. E se diverte falando da peleja interna que é equalizar a própria energia para não errar no tom. Fábio ri ao falar disso:

— No primeiro “corta!” animado que ouvi dele, falei: “Caraca, fiz a melhor cena da minha vida, acho que foi foda”. Aí, todos que vieram depois eram assim também, e eu pensei: “Bom, ou eu estou arrebentando, ou tipo... sei lá...”.

O elenco, integrado em grande parte por atores cearenses, está há mais de um mês na locação, embora o longa só tenha começado a ser rodado na última segunda-feira. Foram 30 dias de preparação intensa, que Karim fez questão de que acontecesse na cidade. Primeiro, os artistas trabalharam para equilibrar as interpretações. Depois, trataram de dar vida às cenas que estão no papel. Até para evitar improviso ou perda de tempo na hora do “valendo”, já que o filme está sendo rodado em película, o que é muito mais caro. Também ensaiaram cenas que não estão no roteiro para criar a gênese dos personagens. Aprenderam ainda como funcionam ações simples (como arrumar cama de motel), além de vivenciarem o ambiente daquele universo.

Fábio, por exemplo, escolheu se hospedar de costas para a praia. Como seu personagem passa grande parte do tempo dentro do motel, quis evitar que o mar o dispersasse de um estado de espírito enclausurado. Karim, por outro lado, escolheu uma casa pé na areia que o colocou em contato direto com memórias afetivas. Nascido no Ceará, ele teve sua infância regada por aquele vento incessante e pelos cheiros do lugar onde volta a filmar dez anos após o longa “Praia do futuro” (2014), e depois de rodar “Firebrand”, sua primeira produção internacional em inglês.

— Passei o dia lembrando do primeiro plano de “O céu de Suely” (2006). Eu estava numa picape em movimento e o sol nascendo. Hoje, essas memórias despertaram. Filmar nessa luz que conheço.... Não lembro dos primeiros dias de filmagem de todos os meus filmes, mas daquele e deste eu vou me lembrar. Chegar no set com o vento, o sol nascendo... Foi forte — define.

Cena difícil

O pôr do sol de um lado e a lua cheia nascendo do outro marcam o fim das filmagens do primeiro dia. Elas terminam num abraço triplo entre o diretor e os atores. O trabalho só recomeçaria no dia seguinte — desta vez, com o set cravado num labirinto de falésias que desemboca direto na praia.

— Foi levinho, né? — brinca Fábio, respondendo à repórter que pergunta se a cena foi difícil. — Imagina! Faço isso todo dia — diz, antes de soltar uma gargalhada.

Oitavo longa de ficção de Karim Aïnouz, “Motel destino” gira em torno de Heraldo (Iago Xavier), jovem de família pobre que cumpre pena numa unidade socioeducativa. Ao sair da detenção, busca uma vida diferente, escapa de cometer um segundo crime e se refugia num motel. Lá, se apaixona pela dona, Dayana (Nataly Rocha), que vive o fim de um casamento abusivo com o ex-policial Elias (Fábio Assunção).

— Me inspirei em “Teorema” (1968), filme do (Pier Paolo) Pasolini, em que a chegada de um novo elemento mexe com uma família inteira. Poderia resumir “Motel destino” como um thriller erótico, sobre desejo e como ele vem de um lugar que a gente não espera — define Karim.

Mas, antes de tudo, ele é, segundo o cineasta, vencedor do prêmio Un Certain Regard no Festival de Cannes com “A vida invisível” (2019), uma história de amor.

— O amor entre um jovem periférico que vive à revelia de um sistema que o quer morto e uma mulher que resiste aos atentados do patriarcado contra a própria vida. É sobre a saga brasileira do encontro de uma pessoa em fuga com outra que está sendo massacrada em um casamento abusivo. Tem um personagem absolutamente patriarcal e a vontade de falar que ou a gente elimina o patriarcado ou continuaremos no mesmo lugar.

Os personagens bem delineados, característica que permeia a obra de Karim, se somam à vontade do diretor em contar uma história com trama sofisticada, envolvente e com apelo comercial, “que capte as pessoas”.

— E que tenha a ver com um gênero que sempre adorei, o cinema noir, que fala do pós-guerra e traz personagens fraturados. Sempre achei que tem relação com o Brasil.

Um Brasil de jovens desamparados.

— Uma geração que vejo pouco no nosso cinema. Vimos em “Pixote” (1981) e “Cidade de Deus” (2002), mas esses filmes não adentravam muito na alma desses personagens. Gente em absoluto desamparo, à deriva, à margem. O desamparo é um tema importante na definição do que o Brasil é hoje. Do que a gente virou e do que poderia ter sido.

Algo que que só existe neste por aqui é, para Karim, o personagem principal do enredo: o motel. É nele onde se entrecruzam questões crônicas da realidade brasileira, “retrato íntimo de uma juventude que teve seu futuro roubado por uma elite tóxica e esmagadora, contra a qual a insurreição e a violência são, não raramente, a saída possível”.

A equipe fez uma varredura por mais de 60 motéis espalhados pelo litoral do Ceará até encontrar um que oferecesse quartos grandes que permitissem recuo de câmera. O escolhido foi totalmente repaginado pelo diretor Marcos Pedroso.

Com roteiro assinado por Wislan Esmeraldo, ex-aluno de Karim no Laboratório de Cinema da Porto Iracema das Artes, escola de formação em Fortaleza, junto com Mauricio Zacharias, parceiro do cineasta em “Madame satã” (2002) e “O céu de Suely” (2006), “Motel destino” é uma produção da Cinema Inflamável e Gullane e coprodução com Globo Filmes, Telecine, Canal Brasil, França, Alemanha e Reino Unido.

É para lá, aliás, que Karim parte no início de 2024 para rodar “Rosebushpruning”, seu segundo projeto em língua inglesa. Anunciado em Cannes este ano, o filme será estrelado por Kristen Stewart, Josh O'Connor e Elle Fanning. Antes disso, o cineasta estreia, no próximo dia 28, o filme autobiográfico “Marinheiro das Montanhas”.

(Maria Fortuna viajou a convite de Cinema Inflamável e Gullane)

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