Cultura
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Por Nelson Vasconcelos


Câmeras seguindo operações policiais nas ruas. Brigas encenadas no estúdio. Apresentador humilhando suspeitos em rede nacional. Este sensacionalismo televisivo no Brasil teve um precursor na figura do lendário “homem do sapato branco”, como ficou conhecido Jacinto Figueira Júnior, paulistano que morreu em 2005, aos 78 anos, em sua terra natal, e que acaba de ganhar sua primeira biografia.

Nascido numa família remediada, Jacinto estudou em escola particular, privilégio para poucos no bairro do Pari, vizinho ao famoso Brás. Quando o pai morreu, o futuro apresentador tinha 17 anos e caiu na vida. Tocou sua vida pessoal com muitas mulheres de ocasião, duas paixões, nenhum casamento, nada de filhos, como destaca o jornalista Mauricio Stycer no recém-lançado “O homem do sapato branco”.

A vida profissional parece ter sido mais divertida. Foi cantor de música country, por exemplo. Afinado, cantou até no Copacabana Palace, nos anos 1940. Não falava inglês, mas resolvia este detalhe simplesmente decorando as letras das canções. E enganava bem no palco. Para não ser desmascarado, tirava onda de astro internacional e não dava entrevistas nem interagia com a plateia, só com o “empresário-cúmplice”. Até que um dia a camareira do hotel os flagrou conversando em português perfeito. Fim da carreira artística.

Foi então que Jacinto caiu no mundo da televisão e da fama. A história começa em 1962, quando arranja emprego como contato publicitário na TV Cultura de São Paulo. Logo vira produtor de “Câmeras indiscretas”. Em sua reportagem de estreia, comentada à exaustão, exibiu passo a passo um transplante de córnea. O sucesso foi retumbante. Em seguida, com talento nato, encarou o papel de apresentador de “Um fato em foco” e, em julho de 1965, estreou “O homem do sapato branco”. Depois disso, circulou entre várias emissoras de rádio e de TV, sempre com sucesso, até 1969.

“O homem do sapato branco” não era exatamente o que se chama de programa para toda a família, mas todo mundo via. Era tosco, com requintes de bizarrice e notas acentuadas de violência social e urbana, além de absolutamente hipnotizante em seu clima noir da Boca do Lixo. Sensacionalismo menos que barato: gratuito. Na sua pauta cabia tudo o que a TV escondia: aberrações da natureza, miséria em qualquer canto, brigas grotescas, “gravidez masculina”, charlatanices em geral, tiro, porrada e bomba. Era tudo chocante, mas Jacinto estava lá para chocar mesmo. Já estava provado, pela sua experiência, que reportagens dessa categoria teriam público garantido.

Jacinto Figueira Júnior — Foto: Arquivo / Diàrio de SP / Agencia O Globo
Jacinto Figueira Júnior — Foto: Arquivo / Diàrio de SP / Agencia O Globo

Daí a fama. Ou, antes, a má fama de espetacularizar a violência e o grotesco das ruas. Quando criticado por exagerar a dose de horrores, o apresentador replicava: “Dizem que meu programa é mundo cão. Mas mundo cão é a realidade brasileira, meu amigo. Por não gostar da paisagem, condenam a janela. Eu sou a janela.”

Meia-verdade. Ele não era tão inocente assim. Stycer mostra que, quando estapeava uma ladra, já detida, na frente das câmeras, ou permitia a entrada de criminosos algemados no estúdio do programa, ou encenava brigas no trânsito, entre tantas outras descaradas fake news, Jacinto estava sapateando sobre os fatos, a ética, a “verdade nua e crua” que prometia mostrar.

Schopenhauer e Nietzsche

Ações assim, aliás, contrariavam o próprio apresentador, que justificava a escolha do nome “O homem do sapato branco” com um pingo de filosofia e muita gaiatice. Contava ele que, segundo Schopenhauer (1788-1860), “só os homens mais puros e dignos, como médicos e dentistas, podem usar sapatos brancos”. E, sem entrar em detalhes, dizia que Nietzsche (1844-1900) também teria sido uma referência para a construção desse personagem.

Certo é que Jacinto foi um personagem demasiado humano, sem maior preocupação com questões éticas ou morais, fazendo de tudo em nome do sucesso. Na sua ótica, a mentira poderia ser apenas uma versão da verdade. Levou a sério essa filosofia e, assim, conquistou seguidores.

O paulistano se tornou tão popular que chegou a ser o quinto deputado estadual mais votado do MDB-SP em 1966. Foi um mandato inútil, sem qualquer projeto aprovado, mas sua popularidade incomodou o governo militar — que, em 1969, cassou-lhe direitos políticos por dez anos, praticamente tirando-o da TV. Sem trabalho, caiu no ostracismo.

Às voltas com problemas de saúde e financeiros, o apresentador retomou a carreira em 1979, só que aí já não era mais o dono da bola. Pencas de outros colegas de profissão já haviam adotado seu estilo, e outros surgiriam desde então. Mas foi só quase duas décadas depois que, doente e sem credibilidade, ele pendurou as chuteiras, em abril de 1997.

Para o bem e para o mal, seu “mundo cão” resultou em outras atrações afins. Sempre com sucesso. Explica-se.

— O que está por trás de todo programa sobre crime é o fraco do ser humano pelo bizarro. A TV vira um lugar de apelação até porque no início havia muita experimentação. Tinha que conquistar a audiência rápido, nem que fosse explorando a curiosidade mórbida das pessoas — analisa Renato Levi Pahim, do departamento de Jornalismo e Editoração da USP. — Esses programas diziam defender o povo, mas no fim abusavam da imagem da miséria, transformando a telinha em um coliseu romano. Abusavam da emoção e da apelação, não primavam pela ética na relação com as fontes. Por isso tinham grande dificuldade com anunciantes, apesar das altas audiências. Mas tiveram o mérito de colocar mais ação no vídeo, saindo para as ruas e quebrando o visual limpo da TV.

'Legado' que merece discussão

Como mostra o livro de Mauricio Stycer, o “mundo cão” do Homem do Sapato Branco acabou questionado, aqui e ali, por setores da opinião pública. As críticas apareciam constantemente na imprensa e eram alvo de debate entre políticos, por exemplo. Mas o estilo de Jacinto também foi defendido por teóricos da comunicação.

— Esses programas surgem numa matriz melodramática da nossa cultura, cumprindo um papel de dizer o que é o bem e de condenar o mal — diz Bruno Souza Leal, professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG. — Por isso são moralistas e estão sempre do lado da polícia, de uma suposta ordem. E por isso trazem esse olhar acusatório contra o que é visto como desvio da norma social.

Só que a questão é mais complexa, aponta Leal. Por exibir modos de existências muito cruas da nossa realidade, os programas popularescos se mostraram sensíveis a dramas sociais que costumam ser varridos para debaixo do tapete. Assim, ganharam mais destaque. Tanto que, nos anos 1960 e 1970, a ditadura chegou a censurar alguns deles.

— A dicção moralista pacifica e empobrece esses dramas, mas também dá espaço a eles na programação da TV — diz Leal. — No fim, ela traz à tona os lugares de conflito do cotidiano muito caros às camadas populares, fala da violência contra mulheres e travestis, da falta de estrutura das grandes cidades, a insegurança na noite.

Promiscuidade

Outra questão problemática é quando há comprometimento na relação de produtores das emissoras com integrantes da polícia. No programa de Jacinto Figueira Júnior, não era incomum a atuação de profissionais das forças de segurança como personagens de uma cena.

Na era do digital, porém, muitos agentes da lei perceberam que, para ficarem famosos, não precisam mais da mediação dos profissionais televisivos. Com isso, os chamados “PMs influencers” ganham dinheiro expondo no YouTube operações policiais, às vezes encarando o papel de repórter. Com distintivo.

— Além da TV aberta nacional, vemos hoje outros dois cenários para o conteúdo sensacionalista: o de agentes não jornalísticos tomando as plataformas digitais, e uma presença forte nas emissoras regionais, onde têm inclusive influência na política local — diz Leal, da UFMG

Stycer lembra que, após um sucesso longevo, a derrocada de Jacinto abriu duas tendências que ditariam o formato nas décadas seguintes — a multiplicação de programas do tipo e sua posterior transformação. Isso porque, nos anos 1990, o padrão de qualidade da concorrência já é outro. Ainda que mantivessem a linguagem sensacionalista, os programas ao menos adotaram princípios éticos básicos como... não inventar notícias.

— Gostaria que esse livro trouxesse um debate sobre como a sociedade pode responder a esse tipo de programa — diz Stycer. — O principal é que não pode haver censura. Por outro lado, esses programas agora têm o rótulo de “jornalísticos” e não são submetidos a classificação indicativa. Podem ser exibidos a qualquer hora. Acho que tem que ter uma regulação quanto a isso.

Uma amostra do que ia ao ar

Interrogatório: No estúdio, Jacinto se aproxima de uma mulher acusada de roubo. “Assaltante? Bonita assim? Quantas vezes você já roubou?” Ela responde reiteradamente que é a primeira vez. “Não mente pra mim”, reclama o apresentador, dando um tapa no rosto dela. Três policiais acompanham a cena e não intercedem em favor da mulher.

Barriga valiosa: Jacinto apresenta um cidadão que tinha um rubi engastado no próprio umbigo, para estancar constantes sangramentos naquela área. Exibindo seis cicatrizes de bala espalhadas pelo corpo, o rapaz conta que fora vítima de vários bandidos, que tentaram (em vão) arrancar-lhe a pedra preciosa.

Exploração: Em 1980, Jacinto organiza uma ceia de Natal para 12 mendigos numa igreja de São Paulo. Eles degustaram peru e leitão, com direito a muitas garrafas de vinho e champanhe, tudo servido por garçons gentis. No fim da festa, mal conseguiam dar entrevistas para o apresentador.

Dúbias glórias: O Homem do Sapato Branco foi o primeiro a mostrar na TV — com estardalhaço — o caso de um pai que teria engravidado a filha. E também o primeiro a mostrar um casal de duas mulheres. E era comum dar ao entrevistado algumas doses de bebida alcoólica para que este perdesse a linha durante a gravação do programa. O artifício era usado para provocar brigas diante da plateia.

(Colaborou Bolívar Torres)

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